Lassance ainda enferma

O marxismo nos lembra que é apropriado falar em ciência se esta estiver comprometida com a realização das diversas necessidades dos povos e hoje, mais que nunca, voltada a garantir a própria sobrevivência da humanidade em contraponto ao seu emprego vulgar

Há exatamente cem anos, um jovem pesquisador brasileiro descobria uma nova doença humana, ancorado em sua sólida formação acadêmica e nos seus profundos conhecimentos científicos – embora em precárias condições de trabalho. Uma descoberta que abriu caminho para o combate de um dos maiores tormentos dos camponeses pobres, transmitido por um barbeiro que se esconde entre as fendas de suas precárias casas de pau a pique.


 


 


Carlos Chagas saia do conforto da cidade grande rumo ao inóspito agreste. Deixava a cidade do Rio de Janeiro, e com ela toda a estrutura de trabalho do Instituto Oswaldo Cruz, para se enfurnar dentro de um vagão de trem adaptado para ser seu laboratório por mais de dois anos, numa longínqua cidade cujos trabalhadores eram vitimados pela malária enquanto construíam a linha de trem da Estrada de Ferro Central do Brasil.


 



  
Lassance ainda hoje é uma pequena cidade do norte de Minas Gerais. É descrita por João Guimarães Rosa em seu célebre Grande Sertão Veredas. Tem pouco mais de seis mil almas. Quando Carlos Chagas pisou pela primeira vez em seu solo era um modesto arraial que sediava algumas poucas fazendas dedicadas à extração da borracha e à agropecuária e abrigava os novos trabalhadores que chegavam de várias partes para construírem a nova linha férrea.


 


 


 


Em que pese ter ido a Lassance com a missão de combater a malária que foi tema de sua tese de doutorado e fustigava os trabalhadores da ferrovia, Carlos Chagas teve o mérito de extrapolar esta função específica e, convivendo diretamente com este povo mais simples, percebendo suas vulnerabilidades e carências mais graves, foi sensível às suas demandas e pesquisou outros sintomas que distinguiam esta gente.


 


 


Ainda hoje, quando comemoramos um século desta importante descoberta, constatamos índices alarmantes de diversas enfermidades tidas pela Organização Mundial da Saúde como típicas de populações pobres e marginalizadas. Mas uma aparente contradição mostra que mesmo um país pobre e marginalizado como Cuba é capaz de vencer estas e outras doenças tais como a dengue, a leishmaniose, a esquistossomose, a tuberculose, entre outras, que persistem em ceifar milhares de vidas todos os anos em diversas Lassances brasileiras.


 


 


Cientistas e médicos cubanos estão juntos ao seu povo e presentes em diversos países do mundo em missões de solidariedade, assim como Carlos Chagas, vivendo e combatendo de perto as moléstias que podem ser vencidas desde que haja compromisso político firmado com os trabalhadores. Mesmo sendo provável que a grande mídia acuse um programa do nível do venezuelano “Barrio Adentro” de eleitoreiro, caso o governo Lula viesse a adotá-lo, é urgente democratizar o acesso a saúde com muito mais profissionais e recursos acessíveis à vida dos brasileiros.


 


 


Carlos Chagas foi o único cientista na medicina a fazer três descobertas sobre a mesma doença (que leva seu nome). Desvendou o patógeno, o vetor e as manifestações clínicas nos hospedeiros. Tudo isso junto ao povo e com o compromisso muito mais elevado do que apenas produzir papers ou publicar artigos em revistas internacionais que de certa forma vai contaminando a academia com a lógica quantitativa, apartada nos gabinetes.


 


 


Enquanto Lassance permanecer enferma, os centros de excelência terão como missão histórica, além de formar profissionais qualificados, prover e educar as futuras gerações de cientistas com a mesma sensibilidade e senso humanitário que nortearam a vida de Carlos Chagas.

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