“Medos Privados em Lugares Públicos”: Pobres diabos

Alain Resnais, em grande forma, faz o público ri da classe média francesa e refletir sobre a solidão e o temor das pessoas de buscar saída para suas vidas

Aos 85 anos, o diretor francês Alain Resnais ainda surpreende. Com “Medos Privados em Lugares Públicos” usa a peça homônima de Alan Ayckbourn para destilar bom humor e uma ácida análise do comportamento da classe média francesa. Um olhar detido sobre vidas particulares, dominadas pela solidão e um fazer cotidiano que beira a mediocridade. Cada personagem merece dele uma atenção redobrada, em seqüências picotadas, que duram às vezes alguns segundos, mas, que logo retornam para serem completadas, de forma inusitada. E, assim, suas vidas são devassadas a ponto de o drama mesclar-se à comédia, ao riso desmedido da platéia em situações que, em outras circunstâncias, fariam qualquer um se retrair diante do ridículo e da intimidade revelada. Durante a sessão ouve-se gargalhadas, comentários e torcida para que os personagens abandonem a contenção e se revelem. Mas Resnais prefere deixá-los entregues a seu cotidiano comum.
            



As situações se desenrolam com suavidade, com cortes marcados pela neve que continua a cair enquanto os personagens vão e voltam em seus desencontros. A neve então funciona como uma cortina que fecha e abre a cena, com mais suavidade que os aviões que representavam as idas e vindas de Jack Nicholson, em “A Honra do Poderoso Prizzy”, de John Houston. E que, denotavam certo arcaísmo do bom diretor Houston, em fim de carreira. Em “Medos Privados em Lugares Públicos”, a neve representa também o enclausuramento dos personagens em seus espaços, sem que tentem olhar para além dela, ou seja, a vida que continua a existir lá fora, independente deles. E a câmera de Resnais, num vai e vem contínuo, sinal de que não perdeu a capacidade de trabalhar com ela, mesmo numa adaptação de uma peça teatral, que prende a ação em espaços fechados.


           


Resnais obriga o público a prestar atenção nos personagens


          


Às vezes seus movimentos lembram os de suas obras-primas  “Ano Passado em Marienbad” e “Hiroshima Meu Amor”. Revelam os espaços (cenários), os estados de espírito dos personagens e uma forma de tornar ágil a trama. Nada há fora do lugar, como nos filmes de certos diretores que confundem mover demais a câmera com agilidade, fazer a trama avançar com cortes rápidos ou achar que com isto o público achará seu filme movimentado, esquecendo-se de que é a ação em si, o que ele tem a dizer, que o atrairá e o manterá atento. Resnais, em “Medos Privados em Lugares Públicos” transforma o espaço reduzido da peça numa virtude. Obriga o público a prestar atenção no que fazem os personagens, coisa difícil hoje, quando violência, explosões, tiroteios desviam a atenção para algo que nenhum sentido tem, porquanto não explica o comportamento do personagem. É tão só  violência, explosões e tiroteios. E seus personagens – os de Resnais – têm muito o que dizer e interagem o tempo todo com o espectador.
           



Os vai-e-vem de “Medos Privados em Lugares Públicos”  lembram muito o estilo picotado de Robert Altman, porém com uma sutileza que o diretor norte-americano não denotava. Muitas vezes, o espectador tem de completar a ação, imaginar como ela transcorre longe de sua visão. Quando Charlothe (Sabine Azéma) se enraivece com Arthur (Claude Rich), o velho ranzinza que, mesmo entrevado na cama, destila mau humor e impropérios – usa velha artimanha da sedução, e não se vê o que ela faz. Apenas projeta o que se passa no quarto, a partir dos gritos e, depois, do silêncio do inválido. Sobram gargalhadas e a torcida para a punição dele, pois todos a esta altura querem é isso mesmo. A situação, no entanto, é surrealista, imprópria para quem busca o politicamente correto. Resnais, usando a idéia de Auckbourn, não se apieda de Arthur, torna-o o vilão do filme. E a heroína, Charlothe, se revela ao longo da história como alguém cujo comportamento levanta séria suspeita. Principalmente pelo modo como seduz suas vítimas, envolvendo-as em dúbias situações.


             


Todos os personagens tentam sobreviver à solidão


          



A começar por Thierry (André Dussollier), seu patrão na imobiliária onde é secretaria. Ele passa o dia num ir-e-vir por apartamentos e prédios e pouco pára na empresa. Quando o faz, ela se aproveita para arrebanhá-lo para sua “causa”. Como boa protestante; ela o quer converter. Ele, a contragosto, aceita seu presente e, ao vê-lo, descobre outros estimulantes. Uma crítica e tanto de Resnais e Ayckbourn ao falso moralismo imperante nesse segmento religioso; interessado em salvar almas frágeis e carentes. Ela, ao que se percebe, quer libertá-lo pelo sexo. Solitário, sem outros envolvimentos, vai, devagar, deixando-se levar. E o distanciamento entre eles, patrão e empregada, antes existente, se esboroa. E ela, que transita entre o apartamento de Lionel (Pierre Arditi), para cuidar do pai deste, Arthur, urde suas tramas sem perder a posse. Está sempre com a cara de quem nada tem a ver com o mostrado no presente que dá a Thierry.
         



De natureza diferente é o relacionamento de Thierry com sua irmã, Gaëlle (Isabelle Carré), uma jovem que, solitária, freqüenta bares onde fica numa mesa sozinha, enquanto apregoa estar divertindo-se com os amigos. Ambos escondem seus sentimentos, ações e comportamentos mais íntimos um do outro. O mesmo se dá com Nicole (Laura Morante) e Daniel (Lambert Wilson). Noivos, com casamento marcado, eles se engalfinham, trocam insultos e se distanciam a cada instante. E, no fundo, todos os personagens de “Medos Privados em Lugares Públicos” tentam sobreviver à solidão. É da solidão, da armadilha das megalópoles e da falta de ousadia das pessoas que o filme trata. Thierry e Gaëlle são irmãos, vivem no mesmo espaço, mas não convivem, trocam idéias ou segredos. Daniel e Nicole, ainda que sejam noivos, procura ir cada um para um lado E Lionel, barman de um luxuoso hotel, não tem vida própria. Vive em função de seu pai, Arthur, inválido em cima de uma cama.


            



Personagens ficam presos em seu pequeno mundo


           



Enfim, estão todos presos em redomas, andam em círculos, sem forças para romper as estruturas que os oprimem. Ao tentarem reagir, o fazem açodadamente. E se recriminam. O muito a que chegam é, como Daniel, buscar refúgio em outra pessoa, também ela louca para ver-se no espelho. Não pense, no entanto, que Resnais, os deixa entregues à suas vidas ordinárias. Como seres humanos, eles podem empurrar para longe de si a solidão, enfrentar a neve que cai incessantemente e encontrar-se. Apenas dois deles irão fazê-lo, justo os que tinham mais a perder. Os demais continuarão entregues a seu mundo estreito e, ainda que cheio de perspectivas, não terão coragem para quebrar estruturas. Menos, é claro, Charlothe, cujo comportamento bizarro, é o que a torna a mais consciente de todos. Ela não se apega a nada. Faz o que deve ser feito, muitas vezes com graves conseqüências. De qualquer forma é o preço a que os outros têm de pagar. E ela termina por libertá-los do peso que carregam.
           


 


Todas estas contradições surgidas em “Medos Privados em Lugares Públicos” revelam o quanto um bom diretor faz a diferença, num filme que em outras mãos, talvez não rendesse tanto. Resnais usa para isto imagens poderosas, com personagens bem delineados, atores no lugar e uma câmera que se move para ampliar espaço e conteúdo. Este, para não fugir à regra, mostra o quanto à classe média vive enredada em seus próprios medos, ações reprimidas, regras que não funcionam porquanto ela mesma as desmontem continuamente. E sempre quando está  sozinha em seu canto. Enfim, trata-se do falso moralismo, que a impede de extravasar seus anseios, usando-os para penetrar em seus recônditos mais íntimos. Resnais não a perdoa, ri de seu retraimento o tempo todo e tem como cúmplice o público que se diverte de situações que, ao invés de apenas trazer o riso, acaba, no final, por provocar a reflexão. Isto é o mínimo que um filme pode gerar neste momento confuso e, como sempre, contraditório em que vivemos.


 



“Medos Privados em Lugares Públicos”  (Coeurs). Drama. França/Itália. 2006. Duração: 120 minutos. Direção: Alain Resnais. Elenco: Sabine Ázema, Lambert Wilson, André Dussollier, Laura Morante, Pierre Arditi e Isabelle Carré.


 



(*) Prêmios: Melhor Diretor, Alain Resnais, e Melhor Atriz, Laura Morante, no Festival de Veneza, 2006.                         

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