“Melancolia”: Mal estar da civilização

A mercantilização das relações sociais, as doenças por ela causadas e a consciência de que a Terra está sujeita às regras do cosmo são o centro do filme do diretor dinamarquês Lars von Trier

    Não é à toa que a depressão acometa a noiva Justine (Kristen Durst), em “Melancolia”, do dinamarquês Lars von Trier. Em pleno casamento, cercada pelos convidados fashion da alta burguesia, seu patrão Jeff (Stellan Skarsgard) a instiga a criar ali a campanha publicitária para um cliente. A insistência dele é tal que termina por exasperá-la. Não bastasse isto, o cunhado John (Kiefer Sutherland), diante de sua recusa de seguir o ritual da festa, repete a todo instante o valor gasto com a cerimônia. Enfim, o capital não dá trégua nem durante a festa dos recém-casados.

    Mas não é a cerimônia em si que interessa a Lars, mas seu contexto, em que os personagens agem segundo suas relações sociais. Nada melhor do que um casamento para tipificá-las. Gaby (Charlotte Rampling), mãe de Justine, em crise de maturidade, aproveita para desancar o genro John e extravasar suas diferenças com o marido Dexter (John Hurt). Este prefere as brincadeiras que quebram a etiqueta e a irrita ainda mais. E existe ainda o recém-casado Michel (Alexander Skarsgard), que nada capta do que ocorre ao seu redor. É este ambiente que agudiza a depressão de Justine.

    Lars, para situar o que ela sente, busca um tipo impreciso de depressão, a “melancolia”, do grego melagcholia. Chamada de “luto” por Freud, por traduzir-se na falta de entusiasmo do paciente, ela se configura em Justine na irritação com Jeff e John, nas caminhadas erráticas pelo ambiente, e no isolamento em locais fechados. Lars consome toda a primeira parte do filme nesta caracterização, que ajuda o espectador a entender o estado de espírito dela.

    E na segunda parte, ele centra a narrativa no risco de extinção da Terra e em Claire, dissociada da melancolia da irmã Justine. É como se dissesse: não estamos desligados do concerto do universo, cujas leis estão fora de controle do sistema capitalista. Passa então da metafísica para o materialismo, através da possibilidade de um asteróide chocar-se com a Terra ou não, levantada por John, crente na inefabilidade da ciência. Esta termina por invalidar-se diante da desconfiança de Claire e do desenrolar dos fatos diante de seus olhos.

Terra não está
livre do acaso

      As probabilidades e o acaso retomam a certeza, sempre negligenciada, de que o planeta Terra, por integrar o sistema solar, sofre as mesmas influências e, portanto, os mesmos efeitos que outros corpos celestes. E que os corpos quentes acabam por esfriar, se desintegrar e se perder no Universo. Quando não são tragados pela força gravitacional dos chamados “buracos negros”. Mas a possibilidade de extinção apavora Claire e não toca John, que acredita na precisão dos cálculos dos astrônomos, e na passagem do asteróide pela Terra, como apenas um fenômeno cosmológico.

    No entanto, é Justine que está próxima da verdade. Ela representa a continuidade da herança cultural primitiva. É deste modo o elo entre o primitivo e o tecnológico, em suma o que restou de autêntico na evolução humana. Desde a primeira parte há nítida diferença de comportamento entre ela e os demais participantes de seu casamento – e se relaciona menos com o ambiente irreal deles e mais com o ambiente natural, pressentindo que algo incomum está em ocorrência.

    Sua melancolia é mais um estado de percepção de fim de civilização, do que doença psicológica em si. Ela capta o que está ocorrendo como o ser primitivo o fazia e por isto reage de modo adverso ao de Claire. A morte para ela é natural. O que ela sente poder-se-ia dizer é tão só premonição. A visão de que haverá extinção pura e simples da vida na Terra. Não discute nem a possibilidade de surgir outro tipo de vida, como o dos seres humanos que sucederam os dinossauros, após a colisão de um asteróide com o planeta.

    O que Lars fez em “Melancolia” foi discutir a extinção da vida no Planeta Terra e dele próprio, não pela punição divina, mas pelas leis do Universo. Com o rigor que caracteriza seus filmes, ele retira da narrativa quaisquer traços ficcionais, dotando-o de assustadora veracidade. Os efeitos especiais estão ali para tornar a ação real, sem concessão ao espetaculoso, tão só para servir de alerta. Ou seja, só existe o concerto do universo e ele é dialético, tem suas próprias leis, não obedece a nenhum cânone, sistema político-ideológico, religioso ou de classe.

    Pena que destas considerações todas fique a impressão de que Lars, para aparecer ou não, fez um comentário que ofuscou sua obra no Festival de Cannes deste ano e acabou banido “eternamente” do evento. Dizer-se nazista na Europa atual, como o fez, é se inserir nos grupos de direita que culpam imigrantes, organizações sociais e de esquerda pela crise na Europa e nos Estados Unidos. Foi punido pela “brincadeira” ou por suas convicções que, embora o desmentido; deixou dúvidas.

Melancolia”.(“Melancholia”).Dinamarca/França/Alemanha/Itália/Suécia.Drama2011. 130 minutos. Fotografia. Manuel Alberto Claro.  Roteiro/Direção: Lars von Trier. Elenco: Kristen Durst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Stellan Skarsgard, Charlotte Rampling, Alexander Skarsgard, John Hurt.

(*) Prêmio Melhor Atriz Festival de Cannes: Kristen Durst.

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