Memórias da saga comunista (II)

Na coluna desta quarta-feira, 20, retiro do livro “Vidas, veredas: paixão”, que produzi para a Fundação Maurício Grabois, em 2012, o relato da tentativa de resistência ao golpe de 1964 na Bahia, que teve a participação destacada de dois dos atuais dirigentes nacionais do PCdoB: Haroldo Lima e Péricles de Souza, então membros da organização revolucionária Ação Popular. A iniciativa foi séria, mas teve lá seus momentos hilários. A conferir.

“Vou botar farda e enquadrar muita gente"

Seguiu a pequena, porém resoluta comitiva rumo a Feira de Santana. Pouco mais de 100 quilômetros, a partir de Salvador, na modesta frota de um jipe, uma Kombi e um ou dois carros. Ao todo, não mais que 20 jovens dispostos a fazer de Feira de Santana um elo na resistência ao golpe militar que, nas últimas horas, lançara os tanques nas ruas para depor o presidente João Goulart.

O engenheiro eletricista Haroldo Lima recebeu a notícia no início da noite de 31 de março, ao chegar a uma assembléia da Federação dos Trabalhadores na Indústria da Bahia, nas proximidades da Praça da Sé. “O golpe está em curso”, disse-lhe o vice-presidente da UNE, Duarte Pereira, que acabara de chegar do Rio de Janeiro. Não houve tempo para muitos discursos. Avisado da aproximação de tropas do exército, que já percorriam a Rua Chile, fechando as portas do comércio e prendendo suspeitos, Haroldo saltou para o velho jipe de seu pai e, com ele uma pequena multidão. Como o jipe recusou partida, foi necessário fazê-lo pegar no tranco. Já se ouvia o rugir dos pesados caminhões militares.

Na casa de Jorge Leal Gonçalves Pereira (dirigente da AP que, seis anos depois, seria sequestrado, torturado e morto pela ditadura) articularam a resistência: retirar-se para Feira de Santana, onde o progressista prefeito Chico Pinto estaria certamente contra o golpe, e ali preparar uma frente de resistência complementar às que certamente ocorreriam no Rio Grande do Sul, com a liderança do ex-governador e então deputado federal Leonel Brizola, e em Pernambuco, sob o comando do governador Miguel Arraes.

Na bagagem feita às pressas, algumas cargas de dinamite e meia dúzia de fardas daqueles que haviam recém cursado o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), do exército. Haroldo Lima, à frente do grupo, pensou: “Vou botar essa farda e enquadrar muita gente lá pelo interior”.

Em Feira de Santana os jovens resistentes encontram um Chico Pinto disposto à luta. Reuniram-se na casa do prefeito, discursaram e fizeram planos.

Seguia a pequena, porém resoluta comitiva no caminho de Feira de Santana. Na hora e meia de viagem, ouvidos pregados no rádio portátil de Péricles de Souza. Nenhuma notícia de resistência no Rio Grande do Sul, tampouco em Pernambuco. O golpe, ao que parecia, marchava célere e, aparentemente, sem obstáculos. A tropa do general Olympio Mourão Filho já havia deixado Juiz de Fora, marchava em direção ao Rio de Janeiro. Mas a comitiva não recuou, embora tenha desistido da primeira ação, prevista ainda para a estrada: sabotar o sistema elétrico mediante um curto circuito que deixaria Salvador e Feira de Santana às escuras.

Na casa do prefeito Chico Pinto o encontro que reuniu os resistentes de Salvador com dezenas de outros de Feira de Santana, começou com discursos inflamados contra o golpe militar. Mas durou pouco mais de uma hora. O exército já havia tomado o quartel da Polícia Militar, de modo que as fardas do CPOR revelaram-se inócuas para a luta.

O espaço da resistência reduzia-se dramaticamente. E as armas? Reuniram ali a artilharia disponível: uma espingarda de caça de Chico Pinto, um revólver calibre 22 de Péricles de Souza e um calibre 32 do motorista da Kombi. Com tão magro poder de fogo, sem notícias da reação gaúcha e pernambucana e percebendo o golpe avançar a passos largos, a comitiva resolveu bater em retirada. Ainda assim, buscou a derradeira cartada: encarregou Péricles de Souza de tentar a resistência através de assembleias sindicais na região.

Na Kombi que havia sido expropriada do Movimento de Educação de Base (MEB), onde Péricles atuava, embarcaram quatro dos últimos resistentes em direção a Cachoeira, município a 100 quilômetros de Feira de Santana. Dormiram as poucas horas que restavam da noite num hotel e, na manhã seguinte, 1o de Abril, partiram para a ação. Nos sindicatos rurais, intensamente criados nos quase três anos do governo João Goulart, as derradeiras esperanças de resistência.

Em sua peregrinação de quase uma semana pela região de Feira de Santana, em busca da resistência dos sindicatos rurais ao golpe em marcha, Péricles e seus três companheiros só foram colhendo desilusões. O clima era mesmo de derrota. Uma parte dos sindicalistas já estava presa, outra havia fugido e havia ainda os que, amedrontados, não concordavam sequer em conversar sobre o assunto. No município de Amargosa, o bispo local, antigo aliado dos resistentes, recebeu-os trêmulo, rogando que fossem logo embora, pois as forças militares já estavam próximas. Ofereceu-lhes algum dinheiro para agilizar a saída. Cruzaram a rodovia Rio-Bahia, logo após deixar Amargosa, e já avistaram tropas em marcha. Então o movimento de resistência foi se tornando uma viagem de fuga que terminou em duas fazendas da região, nos municípios de Itaberaba e Rui Barbosa. Ali os valentes permaneceram alguns dias, observando a evolução dos acontecimentos. Em seguida voltaram para Salvador.

A dispersão dos que permaneceram em Feira de Santana foi mais rápida. No final da noite de 1o de abril, Haroldo Lima e seus companheiros concluíram que, sem a reação legalista do Rio Grande do Sul e de Pernambuco, não haveria como abrir um elo de resistência na Bahia. Então a decisão dramática foi pelo recuo. Alguns retornaram para Salvador. Haroldo refugiou-se numa fazenda de conhecidos nas proximidades de Feira de Santana. Dias depois também ele voltava para a capital, carregando no velho jipe a farda de 2o tenente da reserva do exército, com a qual imaginou enquadrar os reacionários golpistas no interior da Bahia.

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