Minha Caminhada

Sábado, vinte e um de junho de dois mil e três, quatro horas da tarde, rodoviária Tietê São Paulo, plataforma 41, poltrona 41. Embarco sentido Piracicaba.

É que no dia seguinte aconteceria o Grito da Periferia por lá e o Pêu, um dos organizadores, me convidou para chegar um dia antes. Assim poderíamos trocar umas idéias e discutir uns projetos. Fiquei hospedado na casa dele e no domingo cedo fui conhecer a sede da Negrinpo uma entidade na quebrada dele. E, pra variar tem uma par de bico querendo atravessar a caminhada do mano.

De lá fomos para o Engenho Central. Eu já tinha estado ali em 2001 na etapa paulista do congresso da UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). Me lembro que Carla Santos, na ocasião presidente da entidade, pegou o microfone e falou que naquele engenho aconteceram muitas mortes dos escravos que lá trabalhavam e pediu então para fazermos um minuto de silêncio pelas atrocidades e por todos que lutaram pela liberdade. O silêncio assustava e no sexagésimo segundo ela levantou o punho serrado e gritou: "Viva Zumbi!"

Malandro, só quem é pra sentir a força que tem a saudação Black Power. Poucos sabem o valor da consciência e esses não se vendem.

Estava grato pela oportunidade de estar novamente naquele lugar. Um verdadeiro livro de história vivo, que não foi editado nem revisado por nenhum colonizador.

Se não bastasse, o Pêu me levou pra conhecer um lance que fica no meio do engenho, mas poucos conhecem. É um lugar de difícil acesso, a entrada circular, como um grande cano feito de tijolos e com grades, leva para uma galeria subterrânea, de chão batido com pouca iluminação, gelado, úmido. Nesse lugar os escravos ficavam trancafiados quando não estavam trabalhando.

De lá exala um odor estranho; apesar do tempo, ainda está conservado o cheiro de sofrimento misturado com angústia. É um cheiro conhecido: o mesmo cheiro das periferias, favelas, cortiços e prisões.

Voltamos ao galpão principal onde começariam as apresentações. Os grafiteiros riscando e os b.boys rodando naquele chão de paralelepípedo da crew Revolução Break e pelo palco passaram além do Faces da Morte os grupos Alvo da Sociedade, 3 Elementos, Profecia, Formação de Quadrilha, DND, Prospecto, Conspiração Negra, Atitude Verbal, Tok Popular, Rima Nervosa, Procedência Real, Estrada Inevitável.

No último dia de maio rolou outra caminhada até a estação Antônio João na plataforma 2 sentido Itapevi e desci na estação Jandira. Lá me encontrei com Alexandre — um dos responsáveis pela criação do MH2O de Jandira, uma posse formada pela rapaziada da região. No espaço estava acontecendo uma dinâmica de grupo pra galera ir se conhecendo. Houve uma divisão em grupos temáticos para o pessoal poder participar melhor.

Depois foi organizada uma mesa à qual fui convidado a compor junto com o Wilson de Itapevi, o Alexandre, o Francisco e o Paulo Bururu, prefeito da cidade. Fui o último a falar, logo depois do prefeito. E como ouvi algumas críticas sobre o prefeito estar presente, expus minha opinião: "Eu luto por igualdade. O hip-hop é a favor de igualdade. Igualdade significa reunir debaixo do mesmo teto a mim, o prefeito e o cara mais simples da comunidade… Isto é mais uma vitória do hip-hop."

Depois do evento desci na caminhada com a rapaziada até a estação de Jandira. No caminho o Wilson me entregou uma xerox de um jornal que trazia a seguinte manchete: "Vereador propõe criação da Semana do hip-hop em Itapevi". Passei o olho pela curta matéria e depois o Wilson falou: "Tá vendo, os caras estão ganhando ibope nas nossas costas. Esse vereador me chamou na sala dele e apresentou o projeto, disse pra mim que durante a semana as escolas irão abrir espaço para fazermos palestras e debates, explicarmos sobre o hip-hop e terá palcos espalhados pela cidade com shows de grupos locais e os consagrados, terá material para os grafiteiros e apresentações de break." E aí o Wilson respondeu ao vereador: "E o resto do ano? Eu faço rap o ano todo, vivo o hip-hop 24 horas por dia…"

Lembrei desse comentário do Wilson quando fui à gravação do programa Guerrilha, que estréia na Cultura com a apresentação de uma banda que mistura samba com rap chamada Nhocuné Soul. Aconteceu lá um debate com a fundadora do Museu da Pessoa, Imaculada, e o teatrólogo Hugo Possolo da peça Parlapatões com apresentação da Anelis Assunpção. Numa das rodadas de pergunta do público um cara que estava atrás de mim pediu o microfone. Se apresentou como poeta que ralou pra lançar seu livro, questionando o Hugo por ele ter dito que o governo deve dar mais incentivo à cultura: "Você diz que o governo não oferece ajuda à cultura, você não acha que é pedantismo, implorar por esmola ao governo?".

O Hugo calmamente explicou aquilo que o Wilson de Itapevi já sabe: a idéia de que tudo que é feito pelo governo é mero favor. Trata-se de uma idéia errada, difundida com o pensamento neoliberal. Para os neoliberais, como o FHC, o individualismo e a economia de mercado esmagam os interesses coletivos. E Hugo continuou: "Você, como poeta, deve concordar comigo no sentido de que a cultura é uma prioridade e uma necessidade para o homem, promove a socialização e o conhecimento."

E terminou explicando que a peça dele é patrocinada pela iniciativa privada e uma empresa só patrocina uma ação cultural visando ao lucro.

Esse tal poeta deveria ir à periferia para aprender com os poetas urbanos do hip-hop. Mas não virá. E sabe por quê? Porque o orgulho, o medo e o preconceito o impedem. Deveria participar de eventos, como o 3º hip-hop contra a fome, organizado pelo MH2O-J no dia sete de junho com a apresentação do RZO e do Vírus, Bandidos, Função e Polêmicos, cobrando a entrada 2 kg de alimentos para entregar aos mais necessitados e aos que não têm orgulho em pedir.

Jabaquara, vinte de abril, oito da manhã pego a lotação até Santos. O Grito da Periferia por lá aconteceu mesmo com a chuva e os problemas de última hora graças a um cara que nem dormiu na véspera do evento, chamado Daniel, que é correria mesmo. Por lá se apresentaram o Alex Street, Visão da Favela de Osasco, Conspiração e o Fusão Babélica.

"To ligado sangue bom também sou cheio de defeitos, mas não posso me cansar por que não tenho esse direito." (Faces da Morte)

Estive também participando da segunda parte da gravação do vídeo clip do ORB. A primeira aconteceu durante o Grito da Periferia que organizamos aqui em Carapicuíba. Dêem uma olhada nos batidores do clip e assim que ficar pronto o vídeo a gente mostra aqui.

Tô nessa picadilha. Uns dizem que tenho que correr, outros tentam colocar o pé na frente pra que eu caia, mas continuo a caminhada.

" Não se vanglorie, existiram muitos que fizeram mais que você e passaram por piores caminhos." (Potencial 3)

Peço licença porque não posso deixar de mandar um salve para umas pessoas que fazem a minha caminhada ficar mais fácil; não da prá dizer todas, mas são pessoas como o Pêu e sua família que me agüentaram por lá; o Lino Prado, Alexandre de Jandira; a Carla Tais Santos; a Patrícia Spier, que criou bolhas no pé devido à caminhada pelas lombas de São Paulo; e a dona Edel; ao Hot Black, o cara mais fulero de Sergipe; a Nina Rodrigues, que passou por uma barra mas levantou, sacudiu a poeira e continua sua caminhada de guerreira; a Bruna Anhaia; a Dona Flávia Alexandra e a Jú; a Delivânia; Luana; a Aline, que fez aniversário ("quero bolo hein!"); e a Ananda; a Simara Coutinho; a Elaine Cristina; a Luciana, que não é pra caminhar muito por causa de meu sobrinho; a professora América; a Malú; Sumaya Fouad; Patrírcia Bruno; Bernardo Joffily; ao Marcelo Buraco; ao Paulo Shetara e Aldanny Rezende; Mano Mix; ao Freitas; Gil; ao João; a Alaíde e a Olga; Ivan; ao Mão pra Bolo & Cia; o MH2O-J; o CDV, HHC; SOS Periferia; Ponto Negro; Sorriso; Cezar e o Visão da Favela; Osni Dias, o pessoal do NUC; ao Nezo e o Rafael do hip-hop Sul; ao Rainério; ao Rafael Cazu; os grafiteiros Lotto, Tague, Rubens, Trol e Ale; a Roberta; Priscila, Fábio; Demétrios; Áurea; Guido; Feijão; Daniel; Kleber, que está com a caminhada limitada dentro duma sela de 3m2; ao Mandrake; Alessandro Buzo; a Lucilia Ruy; Carlos Pompe; Wadson Ribeiro; Adalberto Monteiro; Daniela; Animal; Thomas; e Você que me prestigia com sua leitura.

Caminhar com toda essa trupi pode não ser o mais rápido, mas sozinho se não guenta.

"O caminho da felicidade ainda existe, é uma trilha estreita em meio à selva triste." (Racionais Mc's)

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