Monarquia, república e feudalismo no Brasil

Ao casal de camaradas Vasco Rodrigo e Luiza, a quem o pensamento de Ignácio Rangel tem servido à compreensão de muitas coisas. Coisas estas que para a maioria de nossos nossos historiadores “marxistas” nada tem a ver com o



Estive no último final de semana, em Brasília, acompanhando o Congresso Nacional da UJS. Fiquei muito impressionado, tanto pelo retumbante sucesso do Congresso, quanto pelo número de militantes que vieram conversar comigo sobre a polêmica aberta por mim acerca da existência do feudalismo no Brasil. Alguns concordam e outros discordam. Compreensível. Aos que discordam, sugeri a melhor compreensão de nosso processo de acumulação a partir de um salto metodológico (seguindo os passos metodológicos de Rangel, inspirados em Marx e Lênin) ligando história, economia, geografia, filosofia, direito e política. Expliquei, que tal salto é necessário, pois vergonhosamente a ampla maioria dos que defendem a hipótese não-feudal não darem a devida importância para o que é essencial, ou seja, o estudo radical de nosso processo de acumulação. Aliás, Perry Anderson  (Considerações sobre o marxismo ocidental) nos dá a luz para compreender essa não-importância.
Além da radicalidade ao estudo de nosso processo de acumulação, sugeri também uma operação simples em economia relacionando a oferta e a procura de bolsas de estudo (iniciação científica, mestrado e doutorado) com a surgimento de uma relação de produção servil em todos os âmbitos da universidade brasileira, capitaneada e internalizada pelo imperialismo e suas Fundações Ford, Rockefeller, Banco Mundial para o financiamento de pesquisas em áreas diversas (índios, negros, pequena produção camponesa ou familiar, ecologia, desenvolvimento sustentado, socialismo com democracia, geografia cultural, jornadas bolivarianas, economia solidária, populismo, escravismo colonial, etc.), fragmentando a ciência (tudo que é sólido desmancha no ar) e tornando o debate aberto e sincero um artigo de luxo ou uma forma de fazer inimigos pessoais. Aliás, uma forma feudal de se fazer inimigos.
Aos concordantes que me pediram mais subsídios, vou procurar desenvolver de forma não muito aprofundada, pois o espaço é curto, a relação entre monarquia, república e feudalismo no Brasil, partindo da resposta à pergunta que o por que ao contrário de outros países da América Latina que se tornaram república, nós nos tornamos uma monarquia.
Para esta resposta temos de ir na raiz e perceber as características das relações externas de produção nas Américas portuguesa e espanhola, relações estas que num primeiro olhar mais generalizado podem parecer iguais, semelhantes. Das não semelhanças poderemos tirar melhores conclusões sobre nosso ser nacional atual e logicamente, de nosso processo de acumulação.
Capitalismo comercial português e feudalismo espanhol
Nos situando naquele momento histórico dado, é mister compreender qual o máximo que poderíamos, os latino-americanos, abstrair ou internalizar, a nível da categoria modo de produção de nossas relações de produção externas. Esse é o primeiro passo, que desembocará no modo de produção de tipo capitalismo comercial. O passo seguinte passa por quais classes eram representadas nas superestruturas de poder tanto em Portugal, quanto na Espanha em tal momento. Começaremos a compreender no concreto que os reis da Espanha eram representantes natos do feudalismo, enquanto que desde D. João I os reis de Portugal eram representantes dos interesses de seu capitalismo comercial. Não é a toa que nosso primeiro imperador foi português assessorado por uma burocracia portuguesa, principalmente os quadros voltados para o aparelhamento de nosso capitalismo comercial (interessante: hoje o imperialismo estrangula a formação de nosso capitalismo financeiro, como dantes Portugal tentou estrangular nosso capitalismo comercial nascente).
Por outro lado, nos países da América espanhola, o latifúndio de tipo feudal era mais forte em todos os sentidos, apesar de haver escravidão desenvolvida em alguns destes países. Digo latifúndio, no sentido de diferenciar com o escravismo na questão essencial do poder: no escravismo o capital fundamental que subordina todos os outros capitais é o escravo e no latifúndio que redunda naquela época ao feudal, tal questão se assenta na terra, o solo.
Circulação de capital e formações políticas
A questão que se coloca de o porque da monarquia ou república pode ser encontrada a partir do monopólio de poder exercido em formações sociais diferenciadas como as Américas espanhola e portuguesa. Ora, meus amigos, numa formação social onde o poder se assenta no escravo, logo uma mercadoria, a circulação de capital é muito mais intensa do que em formações sociais onde a terra é a base do poder (o homem se prende à terra e fica tão imóvel quanto ela). Não é a toa que na Antiguidade existiram impérios muito mais estáveis do que na Idade Média pois a Antiguidade foi escravista e a Idade Média foi feudal.
A circulação intensa de capital, cria amplas condições para formações políticas unitárias, não é a toa que atualmente o livre fluxo de capitais pelo mundo, leva muitos a acreditar na idéia de unidade mundial, sistema mundo e fim do papel do Estado-Nação. Já em formações políticas onde a terra é a base do poder – logo a circulação de capital não é intensa – o exclusivismo regional é latente expressando-se no que chamamos aqui no Brasil de  federalismo. Não é a toa que o número de deputados de uma dada região do Brasil é desproporcional ao número de eleitores comparativamente com outros estados da federação.
Assim sendo, a América espanhola tendeu naturalmente para a fragmentação e ao federalismo, ao passo que o Brasil tornou-se um país escravagista monárquico e unitário. A prova da história nos demonstra que transição escravismo-feudalismo no Brasil transformou nosso país em republicano e federalista.
Mais um elemento é o fato de apesar de o feudalismo ser um modo produção superior ao escravismo, não foi capaz de criar um edifício geográfico e político do tamanho do Império Romano, justamente por seu caráter imóvel do capital. O exclusivismo regional e a fragmentação são típicos do feudalismo. Não é à toa que um dos resquícios feudais de nosso país e essa tal de “guerra fiscal” entre estados.
O comércio exterior e o desmoronamento da ordem escravista
Deliberadamente os processos de transição que nosso país assistiu teve impulso, dada a nossa perifericidade, em impulsos externos e nas crises de nossas relações de troca com o mundo exterior. Daí, os famosos processos de substituição de importações que nasceram no seio da fazenda de escravos (economia natural) até a implantação de nosso novo Departamento 1(indústria mecânica pesada). Sob determinação política, a abolição-república foi expressão da crise de superprodução no centro do sistema naquele momento, enquanto que a Revolução de 30 foi nossa resposta ao fechamento dos mercados externos de café decorrente da crise de 1929. E acredito inclusive que a nossa transição ao socialismo passará necessariamente pela mudança das relações de troca atuais com o mundo exterior, vide a crescente presença chinesa na América Latina, dando um novo fôlego à experiênicas como de Cuba, Venezuela e Bolívia.
Ora, a partir dos Ciclos Longos ou de Konfratieff (ocorridos no centro dinâmico com duração relativa de 50 anos, sendo que 25 anos de expansão e outros 25 de retração), podemos perceber que o auge escravista no Brasil coincidiu com a curva descendente do primeiro Kondratieff, enquanto que a decomposição deste modo de produção por aqui tem correspondência externa com a abertura de um novo ciclo expansivo marcado por uma revolução nos transportes na Inglaterra impulsionada pelo surgimento do Departamento 1(indústria de base). Um país como o Brasil necessariamente deveria se preparar para responder a estas demandas de forma urgente e de forma urgente foi a resposta do capitalismo comercial nascente que se preparava para assumir o poder com a abolição da escravatura e a proclamação da República.
Resumindo, as relações de produção escravista não suportariam, tamanho o leque de atividades que a fazenda abarcava, as exigências do nova divisão internacional do trabalho que nascia com um novo ciclo expansivo no centro dinâmico do mundo.  A especialização, à moda dos corn laws do sul dos EUA, estava na ordem natural das coisas. Nos tornaríamos mais agrícolas do que nunca, tendência esta que refluía na medida que um novo ciclo descendente surgia, causando fechamento de mercados externos e a necessidade de ciclos endógenos de substituição de importações que transformaram o Brasil na economia que mais cresceu no mundo entre 1900 e 1980.
Clarificando: o comércio exterior pautou e pauta nossas transições, vejam a atual problemática das relações de troca com o exterior e com um câmbio que oneriza nossos produtores e uma taxa de juros que serve para inviabilizar a fusão entre capital bancário e capital industrial em nosso país. Estudar história econômica é o “x” para melhor compreender os males que afligem atualmente nossa nação e o povo.
O problema do capital constante e a ampliação do mercado
Um elemento que teve papel significativo na transição ao feudalismo no Brasil foi o aumento da rentabilidade da produção por conta da redução dos custos em capital constante (escravos) o que fazia com que a rentabilidade fosse multiplicada, enquanto que uma economia latifundiária ou feudal produz eficácias marginais muito maiores. Daí o Brasil ter inundado o mercado internacional de café foi um passo. Passo dado basicamente pela forma de relaxamento de relações de produção e a especialização do latifúndio.
Voltando, tal transição é marcada, portanto, por uma liberação de recursos muito maior o que possibilitou investimentos em outros setores econômicos e o fortalecimento financeiro da classe dos latifundiários, que como argumenta Rangel, chegou ao poder com a Revolução de 30 e de forma semelhante tomaram o poder na Alemanha com Bismarck e no Japão da revolução Meiji. Nos três casos a industrialização foi acelerada sem necessidade de reforma agrária, caracterizando o que se convencionou chamar de via prussiana.
Agora, nosso feudalismo não teve início da agricultura e sim na pecuária onde o fato de se necessitar de muito mais terras que à agricultura, colocou a terra como o “capital fundamental” em detrimento do escravo. Porém, na medida em que o comércio externo impunha um novo nível de especialização voltado para um determinado mercado, o monopólio da terra passa o ser o fundamental, enfraquecendo, nas palavras de Rangel “os laços que prendiam à comunidade natural escravista os seus membros e fortalecendo os laços que os prendiam ao mercado.” O processo de exportação de algodão in natura para Manchester e o importar o “manapolão” é por si só um processo de formação de mercado, diferentemente de produzir algodão em escala menor e tecê-lo na própria fazenda.
O diminuição de custos em capital constante possibilitou excedentes à importação de bens produzidos externamente, o que seria impossível numa chamada ordem escravista. Tratou-se de um extraordinário progresso para aquele momento.
O surgimento do capital financeiro e a Abolição/República
A relação entre a transição ao feudalismo e o “binário” Abolição/República, utilizando o termo utilizado por Oliveira Viana é exata. Primeiro porque a monarquia seria incapaz de atender à exigência do desembaraçamento jurídico dos altos custos de investimentos em capital constante e por outro lado, sendo monarquia, estava ficando insuportável as pressões regionalistas. Desta forma, o feudalismo estava na ordem do dia trazendo consigo o caráter imóvel atribuído a todos os fatores de produção.
Este movimento ganha impulso com a Guerra de Secessão nos EUA que foi fator de expansão do mercado interno norte-americano, ao mesmo tempo em que a industrialização inglesa começou a esmorecer criando um duplo movimento: o de restrição de mercado aos nossos produtos e o início considerável de um surto de exportação de capitais em direção ao mercado norte-americano como resultado do surgimento do capitalismo financeiro com a fusão do capital industrial e do capital bancário na Europa.
Ora, como é subjetivo a todo o texto, o capitalismo comercial brasileiro era suficiente para comportar esse processo de transformação em nossas nas relações externas de produção. Portanto, a essência do processo de transição estava em assegurar condições políticas e jurídicas internas para a assimilação deste movimento exógeno de forma que: exportando café aos EUA, mantemos uma balança comercial favorável, os capitais ingleses – para propiciar o aumento da produção de café – buscavam o Brasil para aplicação em transportes, crédito e serviços públicos e com o saldo de nossa balança de pagamentos pudemos remunerar o capital europeu.
O capitalismo comercial chega com a Abolição/República ao centro do poder. O latifúndio feudal como sócio menor deste pacto, somente alcança a condição de sócio maior com a Revolução de 30 precedida por agitações em dois estados da federação. Foram regionalismos típicos de uma estrutura  feudal que desembocou, contraditoriamente, por entraves externos, num dos mais brilhantes processos de industrialização vistos no século XX.

Os feudos encrustados nas escolas de sociologia do eixo Rio-SP podem continuar a negar esta verdade. O imperialismo agradece esta força. E até financia se for possível.

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