Morrer de dengue
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Publicado 03/02/2010 15:00
Já está ficando enfadonho o noticiário sobre dengue. A doençazinha subdesenvolvida ocupa espaço e tempo nos jornais, rádios e tevês, como se fosse uma estrela, uma Gisele Bunchen das enfermidades. Na verdade, não passa de um esquecimento do progresso, da incrível miopia dos governantes e da ignorância geral. Já houve, e há doenças com certo glamour, ainda que tétrico. As pestes, o cólera, a tuberculose, a lepra, a AIDS. Por lembrarem maldição, ou se hospedarem em algum lócus humano especial ganharam notoriedade. São temas de romances, canções, poemas, peças de teatro e, hoje, quase sempre, novelas, filmes hollywoodianos, ou não. A pobre da dengue, entretanto, só alimenta as estatísticas de incúria dos administradores e acentua a precariedade da educação do povo. Não vem da ira de algum deus, não nasce de alguma expiação imposta a pecados pessoais, a vícios coletivos. A dengue não tem nenhum apelo inspirador. Até as mortes que causa não desfrutam de especial necrológio. Registram-se como mais um evento numérico. Tido como doença de pobres, ela, porém, não tem preconceitos, vez ou outra escapa das beiras dos córregos, das poças nos quintais, nas calhas, nas vasilhas descartadas e entra pelas mansões, apartamentos e condomínios fechados. Os mais simples gemem, amargam nas filas da assistência pública. Expõem suas febres, suas manchas, suas dores de ossos quebrados. Outros fazem segredo, curtem seu sofrimento distinto. Afinal, sem nenhum brilho. Não vale a pena noticiar na coluna social que seu fulano bem posto padece de uma miserável dengue. Não tem o charme de uma plástica, um câncer, ou uma cirurgia com promessa de cura do diabetes. A morte que traz vem carregada de banalidade. Por anos seguidos ela vem em ondas aproveitando a fartura de águas, onde o mosquito aedes agiptii procria. Alguns já se reproduzem em água suja, mas prefere mesmo, para saúde de suas larvas, é água limpa, que os humanos deixam em latas, caixas, garrafas, pneus. Não compreendo como a sociedade tolera o convívio com esta comezinha, mas letal enfermidade. Não me recordo de ver no noticiário que algum senador, ministro ou presidente fosse acometido pela mazela. Deve lá, a doença, ter alguma preferência. Ou mesmo um bom sentido de conservação. Porque se entrasse pelos palácios, pelas salas refrigeradas ou pelas mansões dos mandachuvas, já teria sido certamente, extinta. A cura não depende da boa vontade da população, das pequenas medidas higiênicas de furar latinhas, emborcar garrafas e vasilhas. A culpa é total dos governantes. Digo isso por dois motivos: o primeiro é que estão sempre consumindo as verbas da saúde; outro é porque as pessoas acham que o mosquitinho malfeitor só vai gostar do sangue do vizinho. Isso não é uma coisa da natureza, da índole de nossa gente. É falta de educação. A educação que a sangrenta carga tributária deveria sustentar e, em vez disso, vai por aí enchendo cuecas, meias, bolsas e bolsos. Como não se morre de vergonha, vamos morrendo de dengue.