Nos cem anos de Raquel de Queiroz…
Vale um comentário sobre O Quinze, obra tão ou mais conhecida quanto a autora; inda que não controversa como o perfil cultural da cearense. Já na octogésima sexta edição, a simplicidade da linguagem – seu maior traço – ajuda a pôr em relevo a crueza da seca de 1915.
Publicado 06/05/2010 20:14
O cenário surge, não como indício pictórico, mas entranhado nos homens. Não poupa nem Vicente, o fazendeiro de posses que, “Sacudido pela estrada larga do quartau, seguiu rápido, o peito entreaberto na blusa, todo vermelho e tostado do sol, que lá no céu, sozinho, rutilante, espalhava sobre a terra cinzenta e seca uma luz que era quase como fogo.” Para Chico Bento, o vaqueiro pobre, “O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de borralho.”
A opressão de classe aparece no diálogo entre Chico Bento e “o homem das passagens”. Indiferente à sorte dos retirantes, diz o homem: “Que morte! Agora é que retirante tem esses luxos… No 77 não teve trem para nenhum. É você dar um jeito, que passagens, não pode ser…” – Não é um diálogo, é a confirmação do agouro. Na mesma trilha, diz o delegado sobre o filho sumido de Chico Bento: “Não tem jeito que dar não, meu amigo… O menino, naturalmente, foi-se embora com alguém…” Ou no contraste entre a miséria dos retirantes na procissão e os trajes ricos do bispo “(…)os farrapos imundos, atrás do pálio rico do bispo(…)”.
Como boa regionalista, Raquel de Queiroz soube ainda ler o tempo telúrico porque “O sol, no céu, marcava onze horas.” A fome permeia todo o romance, punge quando o menino Josias devora a mandioca brava: “(…)e enterrou os dentes na polpa amarela, fibrosa, que já ia virando pau num dos extremos.” Na mesma altura “(…)roeu todo o pedaço amargo e seco, até que os dentes rangeram na fibra dura.”
Conceição é uma professora que se divide entre os modos urbanos e a bruteza do sertão; é a única que destila preconceito:
-(…)Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com negras?
O Quinze tem narrador onisciente, o que permite à autora imiscuir-se no pensamento de cada personagem, sem que assuma os rumos da abstração de cada um. Assim, na imaginação de Conceição, mostra-a, sem perder a segurança de narradora: “Metido com cabras… não se dava respeito… E ainda por cima, não se importava nem em negar…”
Raquel viu a seca de 1915, no Quixadá; dá indícios de autobiografia ao mencionar Machado de Assis: “E a moça comparou dona Inácia àquelas senhoras de alma azul, de que fala o Machado de Assis…” Aqui a autora se mostra supérflua.
Com Graciliano Ramos…
Vidas secas, oito anos depois d’O Quinze, mostra a “catinga rala”, enquanto Raquel desnuda uma “caatinga cinzenta”. Ambos tão francos quanto a crueza do cenário. Sinhá Vitória, como a Cordulina, de Chico Bento, tem o filho “escanchado no quarto”. Graciliano, feliz à exaustão, tão onisciente quanto a cearense, menciona “sentimentos revolucionários” na cachorra Baleia depois de um pontapé. A reprodução dos costumes entre as classes dá-se quando Sinhá Vitória “Teimava em calçar-se como as moças da rua(…)”. A submissão aos costumes se manifesta em Fabiano porque, usando “chapéu de baeta, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora sofresse com ela.” Atento à opressão de classe, diz que Fabiano – “Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura.” Já a submissão de classe surge quando o personagem “(…)notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade.” Ou quando, olhando para o odiado soldado, assunta:
– Governo é governo.
No capítulo, a subjetividade de Fabiano é explorada até a medula. Também se imiscui com a personagem sem confundir-se com ela; assim, o sonho de Sinhá Vitória é vestir-se de “saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.” Com folgada autoridade, o autor desprende-se das páginas para dizer ao leitor que, Fabiano, imitando “seu Tomás da bolandeira, (…) dizia palavras difíceis(…)Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.” Em Vidas secas e n’O Quinze os capítulos podem ser lidos como peças autônomas. No primeiro, o destaque está no capítulo Baleia. O leitor deseja uma morte rápida para a cachorra, porque o autor mistura as lembranças do animal com a agonia do fim próximo. No segundo, impressiona a sofreguidão com que Chico Bento sacrifica uma cabra para mitigar a fome da família; sente-se um alívio, logo interrompido com a chegada do rico proprietário.
Mas em Galiléia…
O também cearense Ronaldo Correia de Brito põe três personagens de perfil urbano na rudeza do sertão. Com habilidade de escritor maduro, entrega a narrativa a um dos três primos, Adonias, personagem de primeiro plano. O narrador se divide entre as memórias da infância, as preocupações com os primos na viagem de volta à fazenda do avô. Regionalista, o autor tem estilo apurado, escorreito. Quase escorrega num clichê quando “Um relâmpago dos mais fortes clareou o mundo, no momento em que David atravessou a porta de entrada.” Aliás, um clichê cinematográfico. Demonstra concentração poética no foco telúrico: “Dormi como dormem as pedras, sem sonhos.” Os diálogos são ricos de subjetividade, como na conversa entre dois primos, ante a morte iminente do avô:
– Ele está sofrendo?
– Está. A lucidez é um sofrimento.
No capítulo Lourenço, o autor usa três recursos. O relato de Lourenço sobre um episódio de vingança na família, numa prosa própria, sem volteios de romance; o ressurgimento de Adonias, com a narrativa retomando o curso original; logo interrompida por um diálogo rápido, com perguntas e respostas ligeiras. O autor dá uma trégua ao leitor.
Galiléia foi o livro do ano em 2009.