Num disse que eles não têm medo!?

Me surpreendi com tamanha repercussão do artigo Eles não têm medo. Agradeço a todos que se deram ao trabalho de comentar o texto; mesmo para aqueles que me aplaudem com vaias. As críticas também são muito bem-vindas.

As pessoas diziam concordar que os universitários vêm fazer teses e os tratam como cobaias e tal… Mas peraí:

“Quem falou que vacilão é quem tem diploma na mão?” DMN

Uma coisa continua me perturbando: nenhum comentário era sobre o personagem principal do meu texto: a mulecada que não tem medo, como o José Luis que mencionei. Alguns devem ter pensado que falei deles como uma alegoria para o texto ficar mais interessante, ou coisa do tipo. Mas quem pensa assim não esteve no 2º Grito da Periferia em Carapicuíba; os grupos se apresentando, César do grupo Visão da favela falou que o respeito com as crianças é o respeito consigo mesmo e que é melhor aqueles meninos estarem entre a gente do que estarem na rua porque quando estão aqui estamos vendo o que estão fazendo (…), o Uzome-SP tocou Dá lama ao Caos de Chico Science; o basquete rolando, tarde de sol, senti alguém me cutucando, me viro e vejo um garoto que perguntou se eu me lembrava dele, respondi:

– Claro que sim, José Luiz !

Ele falou que estava diferente porque cortou o cabelo, perguntei pra ele:

– Cê não tem o dom de fazer um texto dizendo o que você acha sobre o hip-hop e tal?

– Até tenho, respondeu ele. (continua…)

São Paulo, quarta-feira 12 de novembro de 2003, horário de verão, o relógio no meio da avenida Paulista marca ora 32 graus ora seis da tarde. Tô a mil para chegar a tempo na livraria Cultura, pra tarde de autógrafos do Manual prático do Ódio, livro de Ferrez.

Me senti um tanto desconfortável pois fui o único da fila a não comprar o livro para ele autografar. Já o li inteiro, mas emprestei. Julgo Ferrez como o primeiro dos grandes escritores mundiais do século XXI. Lendo o Manual Prático do ódio me dei conta que em pouco tempo os professores nas escolas irão dar aulas sobre romantismo, barroco, arcadismo… e sobre o hip-hop. E iremos aprender como tudo isso influenciou nas artes visuais, na escultura, na música, na dança, nas roupas, cabelos, no pensamento e na literatura. Teremos a foto nos livros didáticos do precursor desse movimento no Brasil: o escritor Ferrez.

Neste livro percebi que ele nos deu de presente o que tem de mais precioso: o seu talento.

Tentei retribuir com o que posso: o CD Revolução no CaOs que produzi com 8 grupos da região. Foi algo a que dediquei grande parte desses últimos meses, peguei dentro da mochila e entreguei para ele; expliquei que se tratava de um projeto independente.

Ele me disse:

– É assim que descobrimos bons grupos!
Pegou o encarte e pediu para eu dar um autógrafo, falei:
– Quê? Eu autografar para o Ferrez?
Ele respondeu:
-Todos nós somos bons!

Levantou e ofereceu a cadeira para eu sentar, a forma menos desconcertante para aquela situação era autografar de vez, mas não me sentei na cadeira não.

Conversei também com o Preto Ghóez do Clã Nordestino que ganhou o prêmio Hutus como grupo revelação. Segundo o Ghóez a proeza não está exatamente em ganhar o prêmio, mas fazer isso sem pagar jabá nas rádios oficiais; sem divulgação no eixo Rio, São Paulo. Nem esperavam ganhar e atribuiu a conquista aos militantes do hip-hop e prosseguiu:

Muitos que falam da África nem sabem o que é o nordeste, ainda não perceberam que isso aqui é uma nação, não entendem a grandeza do país.

Enquanto ele falava martelava na minha cabeça a música do Trilha Sonora do Gueto:

“Cara é complicado essa vida, mas aprendendo é que se ensina.”
(T.$. do Gueto)

O Clã Nordestino ofereceu o prêmio que ganhou para o Ferrez. Segundo o grupo, Ferrez foi quem acreditou no trabalho deles e os ajudou no CD.

Estavam por lá vários correria, como a Liliane que escreveu sobre o hip-hop cubano na Caros Amigos, e outros que escreveram no hip-hop a lápis, como o Alessandro Buzo e o Ridson Du Gueto. O Freitas do Real hip-hop, Negro Chic e a Sophia que lançará dia 1º de dezembro o livro Carandiru aqui dentro páginas de uma memória, Chico Cezar além do pessoal do movimento 1 da Sul.

Olhei em volta e vi pela primeira vez uma livraria, cheia de guerreiros que não têm medo. E há gente que pensa que a cultura não transforma a realidade.

Falei outro dia com minha amiga Ananda, que me contou que tinha saído de balada e acharam uma carteira no salão, tava cheia de dinheiro, seus amigos queriam pegar o dinheiro e devolver a carteira só com os documentos, ela não concordou e brigou com todos para que devolvessem sem pegar o dinheiro, ainda assim tiraram da carteira 10 reais, depois recebeu a ligação de uma das amigas que disse que os país dela quando souberam da história toda brigaram com ela, disseram que ela não deveria ter pego 10 reais, mas deveria ter pego todo o dinheiro. Ela respondeu que seus pais haviam elogiado por insistir para devolverem o dinheiro. A prática é critério da verdade.

Pra quem continua desacreditando de José Luiz veja o que ele escreveu sobre o hip-hop:

José Luiz, no dia em que o conheci.
Sou o José Luiz, tenho 12 anos e comecei a gostar de rap quando via os ensaios do grupo da minha irmã. Aí já comecei a ir nos eventos e me vestir no estilo. Gosto muito dos grupos HHC, DBS, RZO, SNJ, 509-E.

Gosto do HHC pela maneira que ele está relatando o dia-a-dia de todos da periferia e dos demais grupos uns pelo estilo pesado e por falarem da necessidade da nossa periferia e pela humildade de cada um.

“A vida aqui não é tão boa ao contrário que muita gente boa queria”. (HHC*)

Vivo na periferia e apesar da união das pessoas, tenho visto muita coisa; droga, violência de todos os tipos e fico indignado pela maneira com que as pessoas dos bairros mais humildes vivem em barracos desmoronando com a chuva, crianças vendendo nos trens, nos faróis, pedindo esmola e muitos deles roubando e vendendo drogas.

Não gosto das drogas, elas são ruins, prejudicam muita gente e já vi pessoas morrerem por causa delas, já prejudicaram minha família e outras famílias também. É um vício e prejudica o futuro de muita gente, deixa as pessoas agressivas, descontroladas e principalmente dependentes.

Antes de sair da livraria Cultura falei:
– Até mais Ferrez, sucesso!
E ele complementou:
– Pra nós!

*HHC – Homens Humildes de Carapicuiba, grupo que integra a coletânea Revolução no CaOs juntamente com Visão da Favela e outros.

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