O Acordo de Teerã e as tensões de um mundo em transição
A ousada jogada diplomática turco-brasileira pela paz e pelo respeito aos pilares básicos do TNP atingiu o núcleo da política externa norte-americana, cuja essência, a despeito do governo de turno, permanece sendo prolongar sua hegemonia no mundo. Por isso mesmo, o Acordo de Teera foi seguido de reação de força que fez cair por terra qualquer aparência idealista da política externa de Obama.
Publicado 21/05/2010 12:40
A despeito de matizes e nuances, essencialmente, a reação das potências nuclearmente armadas explicitou a determinação destes países de concentrar neles mesmo o domínio do ciclo completo da energia nuclear, e, no limite, de congelar o stuatus quo da atual ordem internacional.
A Declaração de Teerã deu um xeque-mate na diplomacia norte-americana, ao conseguir acordar com os iranianos exatamente os termos propostos pelo P5+1 em outubro passado, e pela carta de Obama à Lula, enviada há três semanas atrás.
O xeque-mate forçou a explicitação, pelos EUA, de que o tema iraniano está longe de restringir-se ao tema nuclear. Trata-se rigorosamente de tema de natureza geopolítica e geoestratégica.
Há muitas razões para crer que os velhos preceitos de Mackinder – apresentados há mais de um século – acerca do domínio do heartland, seguem atuais na política externa do imperialismo norte-americano. A ofensiva anti-Iraque, que remonta a 1991, a ação no Afeganistão, a proteção de pai para filho para com Israel e suas 200 ogivas nucleares não-declaradas e a ofensiva contra o Irã – eixo do mal na era Bush – demonstra a centralidade, na estratégia estadunidense, da presença no Oriente Médio e na Ásia Central – a propósito, “porta dos fundos” da China e da Rússia.
Barack Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, tendo em vista o que estava em jogo, não brincaram em serviço, mostrando nitidamente que questões estratégicas para o Império são políticas de Estado, não de governo.
Diante da bruta ofensiva, o governo brasileiro demonstrou seu enorme desconforto com a atitude de Obama de buscar neutralizar as iniciativas brasileiras. Consta que pouco antes da chegada de Lula a Moscou, primeira escala de sua viagem, Obama passou hora e meia ao telefone com Medvedev – fato que se repetiu em ligação de Obama ao Emir do Catar, também pouco antes de Lula chegar a Doha. Seguiu-se, já na terça-feira, a apresentação do rascunho de resolução apertando as sanções contra o Irã e na reação nada amistosa da Sra. Clinton em depoimento no Senado daquele país.
O movimento turco-brasileiro visou, antes de tudo, seu próprio interesse nacional.
No caso dos turcos, essencialmente a busca de estabilidade em seu entorno geopolítico no Oriente Médio.
No caso do Brasil, a clara percepção de que o clube nuclear buscará impedir, custe o que custar, não apenas a posse de artefatos nucleares, mas também o domínio da tecnologia para produção de tecnologia nuclear com fins pacíficos, visando dominar uma fonte de energia do futuro, como já escrevemos aqui. Afinal, não é exagero dizer que, depois dos cinco países nucleares, o programa nuclear brasileiro é um dos mais, se não o mais desenvolvido. As pressões norte-americanas na década de ’70 e mais recentemente, as intrusivas tenatativas de inspeções dirigidas a violar segredo industrial das instalações de Rezende (RJ) mostram a ameaça que segue pairando no ar.
Ignorando solenemente o artigo 4º do TNP – que permite desenvolvimento, por qualquer país, de tecnologia nuclear para fins pacíficos –, a reação ao Acordo de Teerã enfatizou declaração de autoridade iraniana que o país continuaria a buscar dominar o enriquecimento à 20%. Uma aberração, prontamente “comprada” pelo aparato propagandistico dos oligopólios de mídia internacional, que ignora um pressuposto que permitiu a assinatura do TNP em 1968. Alguns no estilo bushiano: matéria da Newsweek acusa diretamente o Brasil de praticar "Rogue Diplomacy" (Diplomacia Bandida).
A questão de fundo, quanto ao tema nuclear, é a seguinte: podem os cinco países nuclearmente armados, por critérios estratégicos e de disputa de mercado, definir quem pode e quem não pode dominar tecnologia nuclear para uso pacífico? Isso mina as bases do TNP, desequilibrando-o ainda mais e tornando-o lesivo ao interesse nacional e dos países em desenvolvimento.
Do ponto de vista geopolítico, renova-se e intensifica-se a tensão entre as grandes potências do CS, EUA à frente, agindo no sentido de congelar e renovar a ordem internacional caduca advinda da segunda guerra em contraste com a emergência do mundo multipolar e a conseqüente exigência de reforma do sistema de governança global.
Ensinamentos ao Brasil
Cabe valorizar a postura brasileira nesta redefinição de ordem que vive o mundo. A costura do Acordo de Teerã coroa diversas iniciativas de política externa, que sob o governo Lula, busca melhor refletir, como já dissemos neste espaço, a geografia e a demografia brasileira.
A questão iraniana, a palestina, a relação com a África, dentre outras, mostram o enorme soft power brasileiro. Nação miscigenada, acolhedora e com enormes potencialidades, leva adiante posições decididamente a favor da desconcentração do poder mundial. Por isso, a postura brasileira gera simpatia e admiração no mundo. Mas, ao mesmo tempo, o episódio de Teerã também mostra que, na medida em que aumenta a presença, os interesses e a influência de nosso país no mundo, também aumentam reações ao protagonismo brasileiro.
A vocação brasileira é a paz, para assim, gerar condições exógenas mais favoráveis a consecução do desenvolvimento, grande e primeira aspiração de nosso povo. Mas não nos iludamos: com o crescente protagonismo brasileiro, crescem e se renovam as ameaças. Isso exige, como nunca, fortalecer nossa capacidade de defender nossas independência política e, no limite, nossa própria soberania.
A ordem internacional de transição que vivemos possui, por definição, contornos incertos. O episodio de Teerã e outros tantos recentes, mostram que as potências centrais, mesmo que decadentes no plano histórico, não cederão poder facilmente. Aliás, note-se que mudanças na ordem internacional, em geral, só ocorrem quando se movem placas tectônicas no cenário geopolítico mundial. Amante da paz e do desenvolvimento, o Brasil precisa atualizar seu pensamento geopolítico e geoestratégico em função do novo cenário que se apresenta, mais instável, mais ameaçador à nossa soberania e integridade nacional.
A velha ordem não assistirá “de camarote” a ascensão da jovem e arejada potência, que ao buscar deslocar a confrontação para a cooperação, questiona de forma aguda políticas imperialistas convencionais, convertendo-se assim, num pólo de resistência, de essência anti-imperialista e anti-hegemônica, tendo em vista inclusive seu próprio interesse nacional.
De La Paz, Bolivia