“O Amante de Lady Chatterley”:Amor sem barreiras
Adaptação que diretora francesa, Pascale Ferran, fez do romance de D.H. Lawrence mostra a paixão de uma aristocrata inglesa pelo guarda-caça de sua mansão, durante a 1ª Guerra Mundial .
Publicado 21/12/2007 20:02
Uma das armadilhas das adaptações cinematográficas é correr o risco de tornar o original da obra em que se baseou numa referência a que o espectador busca para checar se a transposição não feriu a essência do que o autor, no caso o escritor, pretendeu ao escrever seu livro. Muitos diretores/roteiristas escapam desta armadilha buscando manter os traços principais da obra original, fazendo dela uma leitura mais condizente com a contemporaneidade. Não foi diferente com a diretora francesa Pascale Ferran, em sua leitura do romance do escritor inglês D.H.Lawrence (1888/1930), o “O Amante de Lady Chatterley”, eivado de erotismo, de feminismo e de discussões sobre luta de classes e socialismo, influenciados pela Revolução Russa, pois o livro foi escrito e lançado no final da década de 20, quando as idéias revolucionárias espalhavam-se pelo mundo. E o império britânico começava a desmoronar, como conseqüência da Primeira Guerra Mundial e da luta de suas colônias nas Antilhas, na África e na Ásia, por independência.
É neste contexto que David Herbert Lawrence (D.H.Lawrence), nascido na pequena cidade mineira de Eastwood, escreve aquela que seria a novela mais censurada de seu país. Publicada em 1928, em Florença, Itália, foi acusada de obscena e censurada na Inglaterra até 1960, quando enfim, pôde circular livremente. Durante esse período, a censura só fez crescer a curiosidade sobre uma obra que, para além do erotismo, tem uma linguagem direta, permeada de neologismos, criações espontâneas, que mostram o quanto contribuiu para por fim ao puritanismo da Era Vitoriana (1837/1901), que ainda permeava a sociedade britânica. E de uma forma tão visceral, que ela, a sociedade britânica, ficou chocada com as descrições das relações sexuais, os termos usados pelos personagens e o desfecho sem qualquer conotação ético-religiosa, que os punisse.
Lawrence aborda as mudanças de classes na Inglaterra pós-vitoriana
Esta abordagem desviou a atenção do tema central do romance, que é a mudança nas relações de classes no interior da Inglaterra, durante a 1ª Guerra Mundial. A história se passa em Wragby Hall, onde vive a família Chatterley, proprietária da mina de carvão de Tevershall. Com as mudanças nas relações de trabalho, conseqüência da vitória dos operários, camponeses e soldados na Rússia, os mineiros ingleses se insurgiam contra a exploração a que eram submetidos. Lorde Clifford Chatterley (Hippolyte Girardot), que regressara do campo de batalha paraplégico, não admitia que seus empregados lutassem por seus direitos. Numa conversa com a mulher Constance (Marina Hands), ele retruca depois de ser questionado: ”(…) Dar o que temos significa conservar a pobreza do pobre e empobrecer-nos a nós também. E a pobreza universal não é o desejável… nada tem de interessante. A pobreza é feia”.*
E a discussão envereda para a questão política a ponto de ela indagar se ele era contra o Socialismo. Ele tergiversa e ela se mostra mais consciente das mudanças em curso do que ele, mergulhado que estava na manutenção de seu poder. Lawrence desce a detalhes, esmiúça as razões da doença de Clifford, que não era só física, mas da decadência, do fim de uma era para a sua classe. Os questionamentos estavam vindo das mais diferentes frentes, e ele, enquanto classe dirigente não o percebia. A própria mulher, à qual dedicava pouca atenção lhe escapava. Ela começava a ter outros interesses que não os de lhe prestar assistência, servir e aguardar um chamado. E ele, pelas circunstâncias, não lhe podia dar mais do que liberdade de movimentos. Sobre ela recai toda a carga das transformações sociais de uma época: a de pôr em curso a afirmação feminina, de gênero.
Livro tem linguagem e ações eróticas
Constance conduzirá todo o processo, da abertura para participação do guarda-caça Mellors, ao uso de uma linguagem cheia de significados eróticos, comportamento livre e total autonomia de movimentos e decisões, coisa que pelos padrões da época era inconcebível.Ao seguir este caminho, ela torna-se o elo entre a luta dos mineiros e a liberação do empregado, guarda-caça, cuja tarefa era evitar que estranhos invadissem a propriedade da família. Mellors, desta forma, deixa de zelar pela segurança de Lady Chatterley, para equiparar-se a ela, numa relação amorosa. A diferença de classe se rompe e ela, sem que ele aceite a manipulação, se vê às voltas com uma paixão incontrolável.O que se vê aqui é a quebra de dois tabus para a época: a relação de uma mulher casada com um homem separado da mulher e de uma nobre com seu empregado. A isto se somam as descrições cruas das relações sexuais, feitas por D.H. Lawrence. Estava montado o arcabouço para o escândalo que seu livro se transformou.
Pascale Ferran usa apenas parte destes fios e os centra na vida tediosa e sem sentido de Constance, jovem de 23 anos, casada com um homem de 29 anos. Seu cotidiano se resume em orientar o preparo da comida, fazer sala ao marido e seus amigos, ouvir enfadonhas conversas sobre a guerra e, depois, recolher-se a seu quarto, solitária, sem perspectiva alguma de mudança, devido à situação Clifford. Este, atingido por granada durante uma batalha em Flanders, França, vive numa cadeira de rodas. Ferran a coloca sempre encoberta por sombras, como se distante do marido. Há sempre muito espaço entre eles. Trocam olhares, algumas palavras, e só. Às vezes, ela passeia pela propriedade, anda pelo bosque, avista a cabana do guarda-caça, Parkin (Jean-Louis Coulloc´h). Numa dessas vezes, ela o surpreende com o dorso nu, fato suficiente para despertar nela toda uma gama de excitações. Fica perturbada, descontrola-se; não sabe como agir.
Espectador sente a aflição da personagem a partir da natureza
Solitária, Constance não tem a quem confessar suas aflições a partir daí. Ferran a mostra perambulando pelo bosque, deslocada, pequena entre as árvores. Sua câmera não se aproxima dela. As cenas são lentas. O personagem cumpre todo um percurso sem cortes. Quando Constance sobe a encosta que leva à cabana onde são guardadas as ferramentas não a vemos em várias cenas: subindo, no alto e chegando à cabana. Ferran a deixa ir, o espectador sente a presença da relva, da árvore, das flores, e ouve o canto dos pássaros. Traduz, assim, via imagem, o ritmo de uma época: tudo era mais lento. E prepara o espectador para o que vem a seguir. O próprio guarda-caça Mellors, chamado no filme de Parkin, é mostrado aos poucos. À distância. A câmera só se aproxima à medida que Constance ganha confiança e ele, Parkin, percebe que a barreira de classe, de empregado/patroa pode ser rompida.
Ambos terminam se envolvendo, sem temores, recompensados pela súbita necessidade de romperem a solidão em que viviam. Para ela, Constance representou mais. “Que havia feito Mellors, afinal de contas? Que tinha feito a ela, Constance? Apenas lhe proporcionado um prazer violento, e um sentimento de liberdade e vida; havia rompido o dique dessa onda sexual natural e ardente que estava represada nela (…)** Discreta, Constante passa a viver uma vida dupla: entre a mansão que divide com Clifford e a cabana onde dá vazão à liberdade. Lawrence torna esta relação torrencial, cheia de significados de classe e conjugais. Ferran, em certos momentos também o consegue, mas falta brutalidade a seu Parkin. Jean-Louis Coulloc´h tem traços rudes, andar pesado, consegue transitar entre o trabalhador deslocado numa relação proibida e o amante eficaz, mas é por demais contido.
Caracterização de Coulloc´h é pouca para seu personagem
Ela, Ferran o faz usar blusão e gravata, como se ele fosse um aristocrata guarda-caça. É uma tentativa de encurtar as diferenças de classe entre ele, Parkin, e a nobre Constance. Quando deveriam ser acentuadas. Parkin fala pouco, não a encara, trata-a com deferência excessiva. No momento em que iniciam a relação, ela não é completa, embora ela se sinta recompensada. Móveis, assoalho, paredes, são rústicos, contribuem para a distancia entre eles: ela acostumada a viver na mansão, decorada por móveis de luxo, entrega-se a ele em cima de um pobre cobertor. É pouco para provocar o choque de classes. A câmera de Ferran não passeia pelos móveis, eles apenas estão lá. O espectador, com isto, tem de aceitar o jogo. Soa mais verdadeiro, o jogo de aparências entre Clifford e ela. O pacto que fazem para continuar a viver sob o mesmo teto, e a artimanha dela para encobrir seu caso com o guarda-caça. Duas partes do filme, de 168 minutos se consomem neste vai-e-vem. Só na terceira parte, Ferran acelera o filme; deixa de lado o ritmo vitoriano e entra na modernidade.
É então que a Constance de Lawrence, a Lady Chatterley aparece. É uma mulher decidida a fazer valer seu amor, sua independência em relação ao marido, Clifford. Ela se descola dele, raciocina sobre novo prisma: o de escolher seu próprio caminho. Suas idéias surgem cristalinas. Está disposta a lutar pelo que a faz viver e, ao mesmo tempo, jogar com as aparências, para não despertar a ira de Clifford. Um novo tipo de mulher, mais condizente com a época em que Lawrence escreveu o livro e se passa a história. As mulheres, na União Soviética, tinham ganho a liberdade de votar, de trabalhar, de se divorciar. Constance age segundo estas conquistas. Seu dialogo com Parkin, no filme, demonstra isto. Ela se tornou senhora de sua vida e dela irá dispor. Ferran mantém sua câmera fixa nela, enquanto ela fala e discorre sobre o que pretende fazer dali pra frente. Parkin, em princípio reticente, vai, aos poucos, se dobrando. O poder se transfere de um para o outro. Ele é agora seu prisioneiro, não só de classe, mas também de sobrevivência por estar por ela apaixonado.
Autores vendem a idéia de que o amor ameniza a luta de classes
Os infortúnios de Parkin, citados no filme em off, o tornam menos agressivo. Está perdido, fora de seu habitat. A mão inclemente de Clifford o tirou de perto de Constance. Lawrence, e também Ferran, vendem a idéia de que o amor ameniza a luta de classes: é possível, segundo eles, um operário e uma aristocrata viverem juntos, como num conto de fadas. Principalmente se a mulher adquire consciência de seu papel na sociedade. A realidade, no entanto, é diferente. Parkin/Mellors perde o emprego menos por ter se apaixonado por Lady Chatterley, mais por Clifford não ter aceitado os conflitos dele, Parkin, com sua ex-mulher. Sua vida pessoal interferiu em suas relações de trabalho. E Constance nada fez para livrá-lo do infortúnio, interessada que estava em distanciar-se do marido, dada à mudança que Parkin provocou em sua vida. Portanto, um jogo de conveniências.
O impacto deste enfoque sobre o espectador é menor hoje do que na época em que o livro foi escrito. E o erotismo das ações e da linguagem é atenuado no filme. Não tem a crueza, a contundência dada por Lawrence em sua obra. Falta ainda uma versão ousada e criativa da novela, ainda que Ferran, às vezes, a use. O contexto político e social surge numa única seqüência. Ferran estava mais preocupada em firmar na mente do público o papel da mulher, vivendo entre dois homens, que a queriam, cada um a seu modo, do que discutir, a partir dela, a mudança de parâmetro sócio-político, como faz Lawrence, no fim da Era Vitoriana. É pouco para um filme que tinha um material ainda explosivo nas mãos. Poderia render muito mais em termos de liberdade criativa, de costumes e de afirmação da mulher no centro da luta de classes.Ainda assim um filme que se vê com atenção.
“O Amante de Lady Chatterley”. Drama. França. 2006. 168 minutos. Roteiro: Pascale Ferran, Roger Bohbot. Direção: Pascale Ferran. Elenco: Marina Hands, Jean Louis Coulloc´h, Hippolyte Girardot.
Notas
(*) Lawrence, D.H., “O Amante de Lady Chatterley”, Os Imortais da Literatura Universal 33, Editora Abril, 1ª edição, 1975, pág. 207.
(**) Idem, idem, obra cit., pág. 302.