O assassinato político de Saddam Hussein

O assassinato de Saddam Hussein não significará, em hipótese alguma, a pacificação do Iraque. Muito ao contrário. A violência sectária aumentará de forma imprevisível, mas imensa. Também a morte de Saddam não significará que os Estados Unidos estão fortes

 


O mundo assistiu estarrecido ao enforcamento do presidente do Iraque, Saddam Hussein, no último dia 30 de dezembro de 2006. No apagar das luzes do não, negando todos os pedidos de clemência, de novo julgamento, em função das irregularidades ocorridas e desrespeitando os árabes e os muçulmanos de todo o mundo que se preparavam para comemorar e lembrar a data mais significativa de seu calendário islâmico – Eid El Adha – as TVs veicularam cenas horripilantes que mostravam o então presidente algemado nas mãos e pés, cercado por três carrascos mascarados, que lhe ofendiam o tempo todo, ser enforcado sumariamente. Numa das minhas “previsões” para 2007 (ver coluna da semana anterior), eu dizia que era provável mesmo que ele fosse enforcado, mas que isso iria piorar ainda mais a situação do Iraque. E a aplicação da pena, cujos “juízes” não esperaram sequer os 30 dias para a sua aplicação, acabou ocorrendo mesmo com o pedido de clamor e indulgência da maioria dos países do mundo. Cabe-nos, neste momento, comentar esse que é, sem dúvida, o mais importante fato político de todo o Oriente Médio dos últimos anos.


 


Os vícios do “julgamento”


 


Saddam sabia, desde a sua prisão em dezembro de 2003, que seu destino estava traçado. Seria morto como uma espécie de troféu de guerra dos neo-conservadores americanos, que justificaram toda a lógica da guerra de ocupação ao Iraque contra Saddam, afirmando – mentirosamente – que o Iraque possuía armas de destruição em massa.


 


 Os graves e sérios problemas do “julgamento”. E faço questão de usar propositadamente aspas para me referir a ele, para desmarcar como completamente falso e obra de ficção do tal “Tribunal Penal do Iraque (sic). Com base em opiniões que recolhi durante os últimos dias de fontes diversas, apresento aqui um resumo dos fatos (1):


 


• Saddam em momento algum teve seu julgamento sendo transcorrido com justiça e equidade. Pelo menos as seguintes mazelas foram cometidas: a) todos os seus requerimentos e recursos foram indeferidos pelo “tribunal”; b) três de seus advogados foram assassinados brutalmente; c) vários desses defensores foram seqüestrados pela polícia política do regime fantoche que “governa” o país, foram torturados, humilhados, insultados publicamente; d) todos os “juizes” foram escolhidos a dedo pelos generais das tropas de ocupação, especialmente sendo escolhidos juizes curdos e xiitas, inimigos públicos e jurados do presidente que estava sendo “julgado”; e) a defesa nunca pode ter acesso aos dados gerais, provas e documentos de todo o processo; f) Saddam e seus advogados não puderam fazer a defesa final, a argüição oral final; foram calados no dia da sentença; g) tal sentença, como se soube, já estava escrita bem antes do “julgamento’ ter sido iniciado e o primeiro Ministro Nouri El Maliki tinha conhecimento de seu conteúdo bem antes de sua leitura, feita, providencialmente, às vésperas das eleições americanas em novembro, para tentar favorecer os republicanos de Bush nos EUA (que, aliás, perderam fragorosamente as eleições mesmo com essa farsa montada); h) e o mais absurdo: o conceituado e antigo advogado americano, Ramsey Clark, ex-procurador geral dos Estados Unidos na década de 1960, foi impedido de estar presente na sala das “sessões” de julgamento do “tribunal”. Ramsey liderava um comitê com quase dois mil advogados que chegaram a fazer uma conferência internacional na Índia para defender Saddam Hussein;



• Nesse contexto, é impossível imaginar que um “julgamento’ com essas características pudesse fazer algum tipo de justiça. E percebam os meus leitores, que não entro no mérito de se Saddam era ou não culpado por erros do passado. Defende-se aqui apenas e tão somente o direito líquido e certo de que todo e qualquer prisioneiro possa ter um julgamento justo;



• Aqui a grande prova da farsa montada: porque se optou em julgar Saddam por 148 mortes ocorridos em 1992, de xiitas no Sul do país? Porque não se começou com o massacre supostamente perpetrado por Saddam contra curdos no norte, onde foram mortos mais de cem mil pessoas na mesma década? E mais: porque não se julgou Saddam pelas possíveis mortes ocorridas na guerra contra o Irã (1980-1988), onde, morreram 1,5 milhão de iranianos? A resposta não se encontrará em nenhum órgão da mídia grande: se o “julgamento” de Saddam iniciasse por esses dois episódios, ele acabaria sendo testemunha de acusação contra o próprio império americano, os Estados Unidos, pois esse país lhes forneceu as armas militares e químicas que mataram essas populações. Assim, a minha conclusão inevitável: a morte de Saddam foi queima de arquivo!;



• As normas básicas das Convenções Internacionais sobre Prisioneiros de Guerra, foram completamente violadas, como denunciaram duas organizações da ONU: a) o Grupo de Trabalho sobre Prisões Arbitrárias e b) o relator geral do ONU sobre a Independência de Juízes e Advogados em todo o mundo. A questão central é a seguinte: tropas de países ocupantes não podem instalar “tribunais” para “julgar” governantes depostos exatamente pelas tropas de ocupação. Isso é básico no Direito Internacional;



• A “sentença” foi assinada formalmente por Nouri el Maliki, primeiro Ministro, mas seu teor foi redigido de acordo com o que queriam os generais norte-americano e o governo de George Bush Jr. É preciso ainda denunciar: o grupo político de Moqtada Al Sadr, clérigo xiita, condicionou a morte de Saddam, para apoiar o governo de Maliki e deixar de oferecer resistência à ocupação, com suas milícias e guerrilheiros do conhecido Exército Méhdi, ou dito de outra forma, um acordo para ampliar a base de sustentação do “governo” (Moqtada tem 30 deputados), a cabeça de Saddam foi rifada;



• Resta-nos a pergunta que não quer calar: quem mesmo deveria estar sendo julgado e condenado à forca nesse momento? Saddam Hussein, que acabou morrendo como mártir nas mãos dos “novos cruzados” ou George Bush, responsável pela morte sabido e provada de pelo menos 600 mil iraquianos nos três anos de ocupação?


 


O simbolismo do assassinato


 


 Todos já viram pela internet os vídeos que estão circulando na rede mundial. Foram feitos provavelmente por guardas incumbidos de acompanhar a segurança de Saddam em seus últimos minutos no cadafalso. São imagens impressionantes. Nunca em um país sério e democrático, se viu tamanha humilhação de um prisioneiro. Isso sem falar que no mundo hoje, além dos Estados Unidos, que ainda adotam a pena de morte, apenas ditaduras sanguinárias e as petro-monarquias do próprio Oriente Médio ainda adotam esse método medieval de condenação.


 


 Os vídeos e áudios disponíveis mostram Saddam sendo insultado e humilhado pelos seus três carrascos, todos devidamente encapuzados, pois se temia que pudessem ser vítimas de seguidores do Partido Baath. Mas aqui indagamos: se o julgamento foi correto e o país vive uma democracia, porque os carrascos encobrem os seus rostos?


 


 A data escolhida não poderia ter sido a pior de todas elas: esse é o dia mais sagrado do calendário islâmico (lembramos que não é uma data fixa, mas móvel, pelo fato que o calendário islâmico é lunar e não solar). É o momento em que são sacrificados animais, para lembrar o sacrifício que Abraão estaria disposto a fazer imolando seu próprio filho, Isaac, para provar o seu pacto e sua fidelidade para com o seu Deus.


 


Abraão teria sido interrompido a pedido do anjo Gabriel (o mesmo que posteriormente anunciaria para Maria que ela daria a luz a Jesus e o mesmo que apareceu para Maomé, e ditou-lhe as palavras de Deus de onde surgiu o Alcorão). Nessa data, muçulmanos de todo o mundo fazem pequenos sacrifícios de animais, especialmente carneiros e cabritos. Mas também é uma data do perdão. É um momento de humildade, de resignação. E nesse dia, o mundo árabe e islâmico, assistiu estarrecido ao enforcamento de um dos seus, que gritava como suas palavras finais no patíbulo: Alláh úh Akbar (Deus é grande, em árabe).


 


Desdobramentos


 


 O assassinato de Saddam Hussein não significará, em hipótese alguma, a pacificação do Iraque. Muito ao contrário. A violência sectária aumentará de forma imprevisível, mas imensa. Também a morte de Saddam não significará que os Estados Unidos estão fortes na ocupação ou que o governo de Maliki encontra-se estável. Ao contrário. Arrisco dizer que é um governo que não emplaca o final deste ano, tamanha a instabilidade e insegurança em voga no país.


 


 O “governo” de Maliki perdeu uma oportunidade importante de assegurar um julgamento justo, equilibrado, com amplo direito de defesa. Optou em dramatizar as mudanças propostas no país, utilizando-se de imagens violentas de líderes do antigo regime, mortos ou humilhados. Poderia mostrar que o Iraque, mesmo ocupado e em guerra interna, poderia ser um local onde a lei prevaleceria. Goste ou não de Saddam Hussein, ele foi o último presidente de um país organizado nacionalmente, soberano, árabe, unitário, sem divisões a que esta submetido nos dias atuais, correndo o sério risco de ser divido em três partes (ao norte com Curdos, ao centro com sunitas e ao sul com xiitas).


 


 Acho que o governo xiita de Maliki abandonou pelo menos dois dos seus objetivos anunciados: 1. De pacificar o país, unir as comunidades xiitas e sunitas, enfim, propor uma reconciliação interna nacional e 2. Obter a cooperação externa, especialmente com os sunitas da rica Arábia Saudita, sua vizinha. Vai ficando cada vez mais claro que o único objetivo a ser perseguido, ainda que não declarado, é transformar o Iraque em República Islâmica, onde os xiitas sejam majoritários, extinguindo-se de vez, a possibilidade de um estado pan-árabe, nacional e patriótico, que um dia já foi sonho de todos os árabes. Busca-se hoje a consolidação do poder xiita, o que levaria ao crescimento cada vez mais dos conflitos sectários.


 


 Por fim, a George Walker Bush restaria implementar pelo menos três pontos que foram apresentados no recente relatório James Baker-Lee Hamilton (dupla de republicano e democrata), que poderia ser: 1. Retirada gradual das tropas; 2. Ofensiva diplomática regional com os vizinhos e 3. Abrir conversações com o ‘inimigo” Irã. Pessoalmente, acho que nenhuma dessas recomendações, que mesmo não interrompendo os conflitos, serão implementadas pelos conservadores republicanos que controlam hoje a Casa Branca. Vai ficando claro que a desocupação do Iraque pelos Estados Unidos será assunto do próximo governo (é bom que se diga: em 2003: basicamente cinco grandes países fizeram a invasão do Iraque: EUA, Inglaterra, os principais fornecedores de tropas, mas apoiados firmemente pela Austrália, Itália e Espanha. Os dois últimos, hoje governados por partidos de centro esquerda, já retiraram suas tropas e Blair perderá as eleições deste ano).


 



(1) As fontes que quero deixar aos leitores: 1. Financial Times com o artigo de análise intitulado “Ditador infame, Saddam teve um fim indecente”, publicado no jornal Valor Econômico do dia 2/1/7, página A17; 2. The Independent – com o artigo de Robert Fisk, intitulado “A besta de Bagdá e os outros culpados”, publicado no dia 31/12/06 pela Folha, página A12; 3. Web Islã, artigo de Yusuf Fernandes, do dia 30/12, intitulado “Assassinato “legal” de Saddam; 4. Lê Monde Diplomatique – artigo intitulado “Nosso amigo Saddam Hussein”, de autoria de Michael Desptratx, republicado pelo portal Vermelho no dia 31/12. agradeço à revisão da Profª Cristina.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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