O espírito dos natais passados: Natal ou Dia do Nascimento?

Lá na Palestina, hoje Graça Aranha (MA), não dizíamos dia de Natal, mas Dia do Nascimento. Após ler “Um Cântico de Natal” (1843), de Charles Dickens (1812-1870), entendi que a data era a mesma. Dickens narra que o avarento Ebenezer Scrooge detestava o Nat

Legenda da Foto:


Escultura de um carro de boi em cerâmica, transportando um casal e seu filho recém-nascido, intitulada “Que Deus Nos Acompanhe”, venceu o concurso de criação de presépios promovido pela Universidade Federal do Maranhão.


 


 


“Um Cântico de Natal” não é, a rigor, um livro infantil, mas eu o li na infância. Um privilégio. Não só porque Charles Dickens é Charles Dickens. Mas por ter lido um clássico natalino universal num lugar no meio do nada, onde quase ninguém sabia ler, há quase meio século. Heranças do meu pai. Legou-me o mundo através da leitura. Lá em casa não faltavam “O Cruzeiro”, “Seleções” e o “Almanaque do Pensamento”, que ele consultava para fechar negócios e quando ia viajar. Papai trazia revistas de Walt Disney de suas viagens a Caxias, onde abastecia o seu “Armazém” de móveis Cimo, bicicletas Monark, cofres e máquinas de costura Singer; e comercializava peles (leia-se: couros de bode, de carneiro, de onça e de gato maracajá).


 


 


Na Palestina, comemorávamos o nascimento de Jesus de modo singular. Não havia padre (cidade sem padre é algo sem prestígio), mas dona Ana do “seu” Diassis (sábio farmacêutico prático) – zeladora da igreja (esqueci a santa padroeira!) -, dias antes do 25 de dezembro, erguia no templo um presépio que até hoje acho o mais lindo do mundo. No Dia do Nascimento, o presépio era um arrozal verdinho, salpicado de gaiolas de passarinhos e iluminado por velas! Em torno dele, na noite de 24 para 25, era puxado um terço e entoados muitos “bendito louvado seja”.


 


 


Em casa, nos empanturrávamos de café com leite e bolos e mal deitávamos, rompendo a madrugada, ouvíamos o batuque do “reisado” glorificando o Menino Jesus: “Ô de casa, ô de fora/Que hora tão excelente/É o glorioso santo Reis/Que vem do Oriente…” Eu me pelava de medo dos “caretas” dos “santos reis”, mas amava “cantigas de reis”. Nada de Missa do Galo (não havia padre, já disse!) e ceia de Natal. Nem presentes. Só no Ano Novo havia o “pagamento de alvíssaras” – prenda que se dá a quem traz boas novas.


 


 


O “almoço do Dia do Nascimento” era leitoa e peru, cuja carcaça era degustada no dia seguinte numa “quiabada” – ossada de peru com quiabo, prato dos mais deliciosos. Mantenho a tradição: faço “quiabada” do peru de Natal.


 


 


Vestíamos roupas novas no Dia do Nascimento e no Dia de Ano (Ano Novo). Mamãe, afamada costureira, se esmerava para vestir a filharada (sete). Na semana que antecedia o Natal, ela costurava até alta madrugada. Vovó, Albertina (cozinheira da vovó) e a tia Do Amparo (irmã do papai) ajudavam nos acabamentos das roupas, fazendo bainhas, pregando botões etc. E eu fazendo roupas de bonecas com os retalhos dispensados, mas também surrupiando pedaços de panos que eram do meu interesse.


 


 


Diziam que eu era “respondona”, “perguntadeira”, “bulia” muito e era traquina demais. Pura verdade! Uma vez fiz um vestido de boneca com uma gola marinheira de um vestido meu! Quando mamãe foi pregar a tal gola, cadê? No Dia do Nascimento, toda faceira, na igreja, eu envergava uma melindrosa de gola marinheira… Demais, não? Hoje, na condição de agnóstica, Natal é a deferência que nutro pela memória cultural dos ritos da religiosidade popular, conforme Dickens, de “um tempo de bondade, de perdão, de caridade e de alegria” do sertão onde nasci.

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