O feminismo chegou na televisão brasileira

“Ao que parece o feminismo chegou na televisão, mas que feminismo é esse? É de fato feminismo?”

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Nos últimos dias as redes sociais foram cenário de mobilização em torno dos ocorridos no reality show mais assistido no país nesta época do ano, a principal pauta: o machismo praticado pelos homens da casa e o suposto feminismo promovido pelas mulheres. A bolha que é a internet causa a sensação, para muitos, de que há uma revolução em curso através destas mulheres enclausuradas competindo por dinheiro e fama, principalmente aquelas que já são famosas pois digitais influencers. Ao que parece o feminismo chegou na televisão, mas que feminismo é esse? É de fato feminismo?

Há quem defenda que as discussões acaloradas são o real instrumento de militância feminista, alcançando milhões de telespectadores e levando aos lares brasileiros a palavra da libertação. Outros apontam que tudo não passa de encenação, que as mulheres brancas, ricas e privilegiadas que ali estão sabem que o discurso girl power vende e promovem, na verdade, um desserviço ao movimento feminista.

Primeiro devemos partir do pressuposto de que a televisão ainda ocupa um lugar importante na cultura brasileira e que essa dobradinha tv e internet mobiliza as bolhas de opinião em redes sociais e reverbera para as conversas do dia-a-dia. As novelas, por exemplo, têm um papel dialético de refletir as mudanças culturais e simultaneamente, fazer refletir sobre os paradigmas e suas transformações. Não é possível ignorar a relevância do que passa nos canais abertos, pois ainda são as principais fontes de informação do brasileiro. Em segundo lugar, é preciso localizar estes discursos que estão sendo disseminados nas redes sociais e compreender melhor a quem eles servem e como podemos analisá-los sem jogar fora o bebê junto da água do banho.

O que é o discurso girl power? É a condensação do feminismo liberal, a ideia de que o feminismo deve promover a ascensão social, econômica e política das mulheres numa perspectiva individual, uma ideia atravessada pela meritocracia e que silencia as desigualdades através de uma noção universal de mulher, mas que na verdade, diz respeito à mulher branca, escolarizada, heterossexual e ocidental. Este discurso está estampado nas revistas de moda e rende milhões de seguidores nas redes sociais à mulheres que enaltecem a ocupação dos espaços de poder. O feminismo foi transformado em produto a ser comercializado, portanto, usar uma camiseta com os dizeres em inglês “o futuro é feminino” já é, nesta lógica, suficiente para mudar o mundo, pois a mudança começa em si mesma e usar uma determinada roupa, tirar selfies e postar nas redes sociais é o ápice do tal empoderamento.

Um conceito importante para o feminismo que vende é a ideia de igualdade, é comum que escutemos de jovens meninas que o conheceram através das redes frases como “feminismo é a luta por igualdade”, mas eu pergunto: igualdade com quem, cara pálida? A resposta é a evidência de que a discussão permanece na superfície de problemas estruturais, o feminismo da internet quer que as mulheres empoderadas sejam iguais aos homens de sua classe e raça. E o erro primeiro de compreensão é a guerra dos sexos que coloca mulheres de um lado e homens do outro, como se fôssemos unidades homogêneas por simplesmente existirmos a partir de um determinado sexo.

Feminismo não é sobre odiar homens, não é sobre vitimizar mulheres, não é sobre um pequeno grupo de mulheres privilegiadas alcançarem espaços de poder enquanto todas as outras permanecem em seus lugares de exploração. E principalmente, feminismo não é sobre lacrar ou cancelar, muito menos é passível de comercialização. Feminismo é teoria política e movimento social, simultaneamente. É construído a partir de pressupostos teóricos que são transformados pela realidade e ao mesmo tempo transformam-na. Quais são estes pressupostos básicos? 1) a compreensão de que a realidade social, econômica e política está pauta na desigualdade entre homens e mulheres; 2) a compreensão de que é necessário transformar ou reconstruir esta realidade (o debate de reformismo ou reconstrução dá origem a correntes teóricas distintas). As teorias feministas vão estudar como e por que se deu esta desigualdade nas diferentes dimensões e como é possível transformá-la.

Reality shows são experimentos sociais interessantes porque dão ao espectador uma sensação de onipotência, como seria a vida se soubéssemos de tudo o que está acontecendo? Que eles promovam reflexões e debates sobre a convivência de homens e mulheres é importantíssimo, mas é necessário se perguntar que retrato da sociedade é aquele que está sendo televisionado, pois a realidade é mais complexa e obviamente a seleção dos participantes atende a um determinado viés. Além disso, estes atores que estão sendo assistidos possuem capacidade de agência e têm compreensões próprias do que o público deseja ouvir, portanto, não é um experimento social livre de interveniências.

Espero que principalmente as jovens mulheres que se identificam com os discursos das sisters se coloquem em estado de reflexão e consigam, através do conhecimento, da informação e do diálogo, avançar nas discussões sobre feminismo. Enxergar o lugar que ocupa no mundo a partir dos privilégios e/ou opressões que viveu é um ponto de partida, compreender que o feminismo que anublia raça e classe é insuficiente é o meio do caminho. Porque a emancipação das mulheres perpassa a emancipação de todas nós.

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