O feminismo no tapete vermelho, as palmas e as batatas

No embalo do movimento #MeToo, que denuncia abusos sexuais cometidos por diretores e produtores do mercado audiovisual, o feminismo se tornou doce na boca dos discursos proferidos sob os holofotes do tapete vermelho.

Rose McGowan é uma das mulheres que têm denunciado a violência de gênero no cinema

O cineasta Roman Polanski nega as mais recentes acusações de agressão sexual, mas admite ter estuprado uma menina de 13 anos, motivo pelo qual fugiu dos Estados Unidos para a França no final da década de 70, onde continua livre para produzir e ganhar prêmios.

Na última sexta-feira (28), ele ganhou mas não foi buscar os Césares de Melhor Direção e Melhor Roteiro Adaptado pelo filme “J’accuse – O Oficial e o Espião” para evitar um linchamento público. Se tivesse comparecido à cerimônia, teria sido recepcionado por um protesto de feministas.

A obra, que ainda levou Melhor Figurino no mesmo festival e angariou outros troféus em Veneza, é mais uma reflexão sobre os horrores da Europa antissemita durante a guerra, esta que é uma das narrativas humanistas preferidas do cinema mundial.

Embora a vergonha diante de um dos maiores crimes já cometidos pela humanidade financie grande parte da indústria cinematográfica, em pleno século 21 a violência de gênero, uma questão básica de direitos humanos, ainda é vista como controversa ou menor.

A pauta nem mesmo é invisível, muito pelo contrário. No embalo do movimento #MeToo, que denuncia abusos sexuais cometidos por diretores e produtores do mercado audiovisual, o feminismo se tornou doce na boca dos discursos proferidos sob os holofotes do tapete vermelho.

Um exemplo é Natalie Portman, que compareceu ao Oscar deste ano vestida em uma capa bordada com os nomes das mulheres não indicadas ao prêmio de Melhor Direção. A performance foi elogiada por muitos, criticada por outros, e a Dior, que assinou a peça de alta-costura, foi bastante divulgada.

A atriz Rose McGowan fez uma das críticas mais contundentes e chamou Natalie de “fraude”, acusando-a de falsa ativista. Como argumento, trouxe à tona o fato de que Portman só estrelou dois filmes dirigidos por mulheres, e não financiou nenhuma outra diretora em sua produtora que não ela mesma.

Em nota, Natalie Portman aceitou a censura e admitiu não ser corajosa como Rose e outras mulheres que têm denunciado os abusos cometidos por grandes nomes da indústria, como o influente produtor de cinema Harvey Weinstein.

Graças ao #MeToo, Harvey hoje responde judicialmente a mais de 80 denúncias de assédio, que vão do abuso ao estupro. O evento é considerado um divisor de águas contra a impunidade dos casos de violência sexual acobertados por Hollywood. 

Mas e Roman Polanski? Continua foragido da polícia estadunidense, protegido pela aura de gênio criativo exilado no Velho Mundo, desviando de ativistas furiosas às portas dos festivais, esperando a chegada dos prêmios pelo correio.

Enquanto a violência de gênero for encarada como um debate meramente moralista, mulheres como a Adèle Haenel serão lembradas de que se seus abusadores não só se mantém impunes, como são premiados por sua sensibilidade artística.

Adèle se tornou um dos nomes do #MeToo francês ao acusar o cineasta Christophe Ruggia de ter abusado dela quando era adolescente. Na mesma noite em que ganhou o César de Melhor Atriz pela atuação em “Retrato de uma Jovem em Chamas”, abandonou a cerimônia após o anúncio do prêmio a Polansky.

O velho narrador polonês dos horrores da guerra ganhou três Césares de 12 indicações, enquanto a própria diretora de “Retrato de uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma, poderia ter levado o prêmio de Melhor Direção.

A crítica cinematográfica, unânime em elogiar a primorosa obra de Céline, ganhou como resposta a Queer Palm, a Palma Gay, em Cannes, principal festival de cinema do mundo. Por contar uma história de amor entre duas mulheres, o filme ganhou um prêmio secundário, pois secundária é a sua narrativa: doméstica, lésbica, feminista.

É assim que as premiações de cinema permanecem consolidando discursos de poder ao invés de reconhecer as obras pelo seu quilate artístico. No fim das contas, nunca foi sobre talento, mas sobre quem são os vencedores, aqueles que podem contar a sua versão da história.

Ao vencedor, as palmas e as batatas.

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