“O Guardião”: Vidas Vazias

Rotina de um guarda-costa argentino é mostrada sem glamour pelo diretor-argentino Rodrigo Moreno

Não se sabe em “O Guardião”, do argentino Rodrigo Moreno, quem tem a vida mais insípida – o ministro do Planejamento argentino, Artémio Vallejos (Osmar Nuñez), ou seu segurança Rubén (Julio Chávez). Obrigados a atividades em que suas personalidades devem ser contidas, eles transitam por espaços vazios, estreitos, para evitar um possível atentado. Embora tenham atribuições diferentes, um depende do outro para levar adiante sua existência. Esta ambigüidade marca o filme desde o início. Rubén está sempre a poucos passos de seu protegido, mantém-se à porta de seu gabinete ou do local onde ele está em reunião ou dando entrevista. E Vallejos segue sua orientação, por corredores desertos a fim de escapar ao inimigo, como se este estivesse sempre à espreita. Ambos estão, assim, umbilicalmente ligados.



          


É como se o segurança ditasse a ação de seu superior, alguém que depende dele para sobreviver. Mesmo em momentos de lazer, de descontração, este papel não se inverte. É com este enredo que Moreno encadeia seu filme, sem pressa ou conflitos para além da realidade imediata. Rubén é um ex-oficial do exército que serviu na fronteira de um país não especificado – tinha futuro, mas cometeu um erro que o levou a ser segurança de um ministro de Estado. Sua vida particular é comum, sem nuances que provoquem conflitos para além de seu círculo familiar. Quando muito uma preocupação excessiva com sua mulher, que tem sérios problemas de comportamento. Mas nada demais. Ele a suporta, já se acostumou a lidar com sua mania por detalhes e apego a uma amiga, a quem quer dar a chance de se transformar em cantora.


 


           


Agente leva vida de pessoa comum


            


 


Fora deste círculo, Rubén fica sempre à espreita, a fumar, solitário, à espera da saída de Vallejos. Não é diferente a vida de Vallejos, sempre às turras com a mulher, obrigado a ser gentil com o casal francês, por interesse puramente político ou ignoram o mau comportamento da filha. A exemplo da vida de seu segurança, a sua não tem grandes lances, festas espetaculares, quando muito uma visita à amante, a percepção de que a imprensa retrata mal a condução dos negócios de Estado. Nenhum risco se lhe apresenta. Este enredo parece tedioso pelos padrões dos filmes de ação americanos em que o segurança, com o pomposo nome de agente, normalmente do FBI, é uma figura empertigada, com charme de herói. Nada disso emoldura o filme de Moreno. Sua abordagem, sombria, presa ao cotidiano, não trai, porém, a essência dessa profissão saída das entranhas da Guerra Fria.



                


“O Guardião” mostra o quanto esta profissão é insossa, presente hoje na vida de milhões de pessoas, uma vez que o segurança é encontrado em qualquer repartição pública, bancos, shoppings, empresas, festas, ou seja, em qualquer lugar que se vá nas metrópoles e, até mesmo, nas pequenas cidades. Nenhum glamour a adorna. Faz parte do exército de reserva, particular, criado pela burguesia para escamotear a falência de seu próprio Estado. Numa das cenas que melhor a ilustra, Rubén permanece no carro, enquanto o ministro Vallejos degusta um saboroso sanduíche num restaurante chique. É como se ele se anulasse para proteger ao homem que garante seu emprego. Quando foge à rotina, entra no apartamento de uma prostituta que, ao invés de excitá-lo, o leva ao alheamento. Ele se submete a essa rotina com uma paciência, uma entrega que incomoda. Sua figura, quarentona, sem glamour algum, não torna sua tarefa menos que enfadonha.


  
                 


Mas é isto que torna “O Guardião” um filme diferente. Tudo nele foge ao padrão hollywoodiano, que cria histórias onde sempre há uma ameaça terrorista ou alguém se interpondo no caminho da autoridade. Nada disso há em “O Guardião”. O agente Rubén é um cidadão comum, um profissional aplicado que nada espera além da rotina. E procede desta maneira até quando tem de suportar os chiliques da filha de Vallejos. Apenas cumpre as normas. Fosse um filme americano haveria romance, tiroteio, perseguições de automóvel, gritos e, enfim, a apoteose com o triunfo do agente sobre os “terroristas”. E então seria uma produção para quem aprecia filme de ação, não um filme que analisa o comportamento humano diante da mesmice. Quem entrar no cinema à espera da estética americana, sai no meio da exibição com o ar de quem foi traído em seus propósitos.


 


                 


Rotina de agente não tem futuro


                


 


No entanto, devia permanecer para levar um choque no desfecho da narrativa. “O Guardião” escapa à armadilha de “Na Linha de Fogo”, do alemão radicado nos Estados Unidos, Wolfgang Petersen, em que Clint Eastwood faz um agente com drama de consciência. São personagens diametralmente opostos. Rubén não vive nenhum dilema. Pelo contrário, acostumou-se a dizer “sim” ao ser avisado de que deve aguardar Vallejos mais um pouco, mesmo depois do expediente. Chega a desligar-se, por momentos, da atenção que deve manter para evitar surpresas. É um bom cão de guarda. E o que fará no instante em que se esperava dele apenas o cumprimento do dever é mais por ver no outro seu espelho, uma inutilidade diante da exigência da vida, que um arremedo de vingança. É uma cena chocante, pois surpreende o espectador, já acostumado ao desenrolar das cenas sem o crescendo que normalmente faz o filme andar. Foge ao clichê, ao confronto com o vilão, uma vez que a situação que o levou àquela atitude deriva da percepção do que sua vida se transformara. Busca tão só reconciliar-se consigo mesmo, e evade-se para o espaço que o fará um ser livre da tarefa de ser sombra de uma autoridade cuja vida não difere da sua, em mediocridade.


 


                    


Neste instante o filme ganha sentido. Sua lentidão, sem ação espetacular, o faz diferente. Mostra o quanto o cinema argentino ganhou em dramaturgia, em reciclagem de temas. “Guardião” é um pequeno filme, desses que se vê e se entende porque desglamouriza uma profissão que o cinema americano trata como herói, talvez pela tentativa de justificar a criação desse exército particular, que tenta proteger homens responsáveis pelo descalabro em que vivem milhões de pessoas planeta afora.  Nada há para enaltecer, diz Moreno,  principalmente porque a vida do segurança é tão só uma sucessão de rotinas.  Daí a razão de Rubén ter optado por destruir o que se passava por um trabalho aparentemente útil, mas que o tornava um ser sem futuro.


 


 


“O Guardião” (El Custodio). Argentina/Alemanha/França. 2006.93 minutos. Direção: Rodrigo Moreno. Elenco: Júlio Chávez, Osmar Nuñez, Marcelo D´Andrea.

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