O Mascate, o Joanim e o Brasil na Década de 1960

Corria o ano de 1964. Como a maioria dos jovens, ansiava a chegada da minha idade adulta. Eram os anos de chumbo. Os militares no poder asfixiavam os jovens, os estudantes, os operários e a imprensa. Apenas uns poucos políticos carreiristas, enchiam de favores os oficiais de estrelas coroadas, para pegarem um pouco do butim, como por exemplo, ser nomeado prefeito (sem ser eleito), ser ministro sem qualificação, etc. Parece que estou falando dos dias atuais, mas estou falando de 1964. Um grande banco privado ( cuja matriz fica num bairro de Osasco, cidade pertencente à Grande São Paulo, onde eu morava), fez uma festa no mês de novembro, exatamente no dia em que os norte-americanos festejam o Dia de Ação de Graças. A festa ocorreu no estádio de futebol recém inaugurado. O banco em questão, num arroubo de patriotismo, bancou um show com artistas do rádio e da televisão; pobres artistas, que não podiam cantar música de protesto nem fazer quadro cômico que falasse ou desse a entender que era uma crítica aos políticos, leia-se "ao poder". Convém lembrar que, naquela época, todos os jornais ou revistas de grande ou média circulação, tinham que agüentar a figura do "censor", que embora provavelmente não soubesse diferenciar um ditongo de um hiato, mas sabia que tinha o poder e desse poder se servia para cortar informações que seriam publicadas, muitas vezes nem sequer seriam informações perigosas ao regime militar, mas que poderia, via jornais e revistas, passar informações que o povo tinha o direito de saber. Como queriam que o povo ficasse sem informações, censuravam (proibiam) algumas informações. Alguns desses jornais ficaram famosos, pois o espaço reservado para uma notícia ou fotografia censurados, colocavam "receitas de comidas e doces"(O Estado de São Paulo); outros publicavam poesias de Drummond, Olavo Bilac,Fernando Pessoa, Camões, Castro Alves (Folha), uma revista semanal publicava no local da matéria censurada apenas o desenho da árvore símbolo da revista (VEJA). Mas, ali na sede daquele banco, o presidente do mesmo, cheio de dedos, bancava aquela festa com o intuito de agradar os militares no poder. Houve cantor de sucesso que cantou o hino nacional, houve fanfarra e painéis vivos, feitos pelas crianças, cujo ensino fundamental o grande banco patrocinava, aqüaloucos, saltos de paraquedas, distribuição de cachorro quente, refrigerantes, pipocas e etc.
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O show consistia de alguns "sketchs", com atores da extinta TV Tupi, dentre eles a atriz Ana Rosa, o ator Carlos Alberto, Walter Forster, os comediantes Canarinho e José Santa Cruz, a cantora Carmem Silva, Nerino Silva, Francisco Egídio e etc. A apresentação era feita pela Márcia de Windsor; pena não lembrar-me de todos…
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Pois foi nesse dia e lugar que conheci o Joanim Pazzinatto. “Oriundi”, filho de italianos, o Pazzinatto era muito falante e cheio de manias, porém era uma pessoa "do bem"; e minha turma logo o adotou. Posteriormente, fizemos uma grande amizade. Pois foi o Pazzinatto que contou um "causo"; bem interessante.

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Os Pazzinatto moravam, naquela época, numa espécie de chácara, fincada entre Carapicuíba e Barueri, num cantinho e resto de uma pequena e antiga fazenda, que havia sido loteada em uma dezena de pequenas propriedades, cujo acesso era uma pequena estrada de terra batida, que passava ao largo e ao revés de uma fazenda do Exército. Pois é, os Pazzinatto ali viviam, naquele rincão bonito, de vegetação soberba. O único problema daquelas dez famílias que ali moravam, era a dificuldade em pegar condução para São Paulo, ou para Osasco, onde pudessem ter acesso à cultura, e ao comércio.
Como os comerciantes ambulantes daqueles tempos não mediam esforços para garantir vendas e lucros, alguns deles passavam quinzenalmente naquelas chácaras, anotando pedidos e acertando preços em caderneta. Depois, viriam na quinzena seguinte trazendo a encomenda e receber sua parte. A dona Carmela, a "mama" do Joanim se encantou com as amostras do turco mascate e fez uma boa encomenda; como o mascate trouxe a encomenda no prazo e no preço combinado, fez fama na vizinhança, pois a Carmela era exagerada até para elogiar; então turco mascate fazia presença constante naquelas bandas. E como o mascate era agradecido pelas boas referências da dona Carmela, ela era sempre a primeira a ser visitada, pois o mascate não deixava, por nada desse mundo, de dar a oportunidade da Carmela ter a chance de escolher primeiro suas quinquilharias, relógios de pulso e de parede, ampliação de fotos coloridas, cortes de tecidos finos, meias de seda, broches, camafeus, colares de pedras coloridas, sianinhas, rendas, botões, carretéis e meadas de linhas coloridas para bordados, gravatas, cuecas, jogos de porcelanas e faqueiros e etc. E o mascate podia ser visto de longe, com aquele seu jeito especialíssimo d e caminhar, meio rebolando, meio gingando. Em função deste caminhar engraçado, a Carmela, por não saber o nome do turco, tratava-o entre a família, como "signore culo cagato". E era assim que o Joanim pensava que era o nome do mascate.
Numa dessas vezes, o Joanim, que não havia ido à escola por sorte de uma gripe forte, estava no quarto, quando bateram palmas e chamaram à porta da casa. Como a Carmela estava nos fundos do quintal falando com as comadres, não se deu conta da visita do mascate. E o turco chamava alto, batendo palmas insistentemente. Como o Joanim não agüentava mais aquele vozerio foi, com algum esforço, até a sala e reconheceu que ali estava o mascate com a sua indefectível mala marrom.
E dali mesmo, ao lado do mascate, gritou a plenos pulmões para que não só a Carmela, como toda a região pudesse ouvir:
-Mama, il signore culo cagato estano qui!
E o mascate, apagou o sorriso do rosto e rodou sobre os calcanhares e foi embora rebolando. Meu amigo Joanim, até então nunca soube por que o mascate nunca mais apareceu; nem para cobrar a última prestação do aparelho de rádio portátil novo que a Carmela comprou para acompanhar as novelas da Rádio São Paulo.

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