“O Menino e o Mundo”, falsos disfarces
Em mescla de documentário, ficção, denuncia social e busca do pai cineasta paulista Alê Abreu expõe perversidades do capitalismo em crise.
Publicado 10/03/2016 15:51
Numa alternância entre o realismo da megalópole e as alegorias do meio rural, o cineasta paulista Alê Abreu se vale dos recursos do documentário e da ficção em desenho animado, para tratar dos contrastes e perversidades sócio-econômicas no Brasil e na América Latina (e não só neles). Neste “O Menino e o Mundo”, ele se atém a uma complexa história linear, sem confrontos e sonhos, típicos dos dramas aristotélicos, e destaca o temor do Menino de perder suas ligações com o Pai migrante.
Sua narrativa integra as cadeias do agronegócio, da indústria e da exportação, a partir da plantação e da colheita do algodão numa fazenda mecanizada até sua transformação em fio e tecido numa fábrica. Etapas estas a incluir a mutação do camponês em proletário rural, configurada na família formada por pelo pai, a mãe e o Menino. E, ainda, as consequências do confronto entre capital e trabalho, que expulsa o pai para o meio urbano, onde se transforma em deserdado.
Com arguta observação da realidade e das contradições sócio-econômicas do capitalismo neoliberal, Abreu estrutura estas transições sob o ponto de vista do Menino. Acostumado às fantasias de garoto do campo, ele passeia pelas nuvens, brinca com o cachorro e vive na segurança do pai e da mãe. Sua descoberta do universo para além do campo reafirma uma realidade ditada, de novo, pelo capital. Não é mais a imposição subjacente ao ciclo da natureza, de antes, mas do mercado atual.
Filme foge ao velho desenho
Não se trata de desenho animado hollywoodiano com narrativa marcada por efeitos especiais em ritmo alucinado. Abreu usou giz de cera na criação do Menino, efeitos visuais, colagens, computação gráfica em 2D e 3 D e técnicas de stop motion (movimentos e expressões do boneco são criados, filmados e montados dando a ideia de continuidade). Embora não elimine a fantasia e o lúdico, sua narrativa evita o vilão identificável, a frágil mocinha e o happy-end, ao opor estruturas de poder aos deserdados.
Com esta construção, Abreu atrai jovens e adultos para a realidade urbana com a qual convive sem ver-se por ela responsável: I – o gigantesco aglomerado a ocupar toda a montanha, visto como “mal necessário”; II – o lixo acumulado nos lixões, “forma de sobrevivência de milhares de famílias”; a devastação do meio ambiente, negligenciada pela burguesia e forças conservadoras; IV – o desemprego, como razão de o proletário se tornar ambulante numa praça, rua ou esquina.
Mas aos olhos do Menino tudo à sua volta tende ao encantatório. Da profusão de cores no campo, em tons verdes e vermelho fortes, aos espaços vazios; de sua integração à natureza à harmonia familiar. Na megalópole, onde vai à procura do Pai, temendo ficar desamparado, se depara com prédios e máquinas gigantescos, e intermináveis escadarias morro acima, e o encanto se dilui na multiplicidade de distrações.
Ritmo é ditado por músicas e vozes
Porém, não se ouve os sons do gigantesco mecanismo a reger a megalópole – das buzinas dos veículos no trânsito às vozes da multidão, do barulho das máquinas aos apitos dos navios, das vozes dos locutores no noticiário às músicas dos comerciais na TV. Os sons e o ritmo são ditados por repetidos tons de vozes, flautas e percussão, seja na subida das escadarias pelo Pai e o Menino, seja nas ruas.
Não só isto. Os raros diálogos são uma espécie de esperanto, incompreensivel, mas pleno de significado para o Menino. Reforçando o surreal universo pelo qual transita ao super-dimensionar espaços, prédios, veículos, máquinas, surpreendido pelo som realista do cotidiano a explodir com força no carnaval, na feira e na praia. Deste modo se vê diante de elevadores, de contêineres, da fábrica sugadora de operários de Metrópolis (Fritz Lang, 1927), numa antevisão do hoje.
Assim o tema se expande para outras temáticas, igual à da máquina desejante em que se transformou a TV, para o suplício do proletário, num contraste entre seu poder de compra e o que é estimulado a consumir. Na criativa sequência do jantar do Pai e do Menino, os comerciais lhes oferecem frango assado e batata frita de fast food enquanto fazem uma pobre refeição. Impossível não ver nesta contraposição a falência do sistema que, ao invés de satisfazê-lo, o leva à constante frustração.
Abreu intui a falência urbana
Não à toa, Abreu reverte o processo de absorção do proletariado rural pela megalópole ou grandes centros urbanos. Ao apontar uma saída no desfecho, intui a falência dessa concentração populacional, onde a qualidade de vida só decai e os problemas só aumentam. Se no futuro houver a chance de comunidades autossustentáveis, informatizadas e geridas pelo sistema em que o mercado, o capital e a máquina desejante sejam excluídos, não haverá de ser rejeitada como solução construída.
“O Menino e o Mundo”. Documentário/ficção/animação. Brasil.2013.85 minutos. Música: Ruben Feffer/Gustavo Kurlat. Coordenação artística: Priscila Kellen. Câmera/efeitos/composição: Débora Fernandes/Débora Slakta/Luiz Henrique Rodrigues/Marcus Vinicius Vasconcelos. Cenários/animação/roteiro/direção: Alê Abreu.
(*) 38° Festival de Cinema de Animação de Annecy, França. Prêmio Cristal 2014.
– Indicado ao Oscar de Melhor Animação 2016.