O mundo encantado de Cármen 

"A novidade é que o Brasil não é só litoral
É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul
Tem gente boa espalhada por esse Brasil
Que vai fazer desse lugar um bom país
Uma notícia está chegando lá do interior
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil
Não vai fazer desse lugar um bom país"
(Milton Nascimento/Fernando Brant)

As elites brasileiras sempre tiveram os olhos postos no além mar. Lisboa, Londres, Paris e, mais recentemente, Miami, esse tosco objeto de desejo, se constituíram em destinos prediletos. Como na canção popular, essas elites viveram e vivem “de frente para o mar, de costas pro Brasil”. Uma parcela significativa do judiciário brasileiro também agiu e age assim. Considerando-se uma espécie de “casta” superior, habitando um Olimpo distante e inacessível, nosso judiciário sempre teve uma forte tendência a ficar de frente para o mar, dando as costas ao Brasil e ao povo brasileiro.

Essa atitude provoca uma espécie de dissociação da realidade e a criação de um mundo paralelo, um reino encantado, onde os desejos e as vontades valem mais do que a “dura, concreta poesia das nossas esquinas”. No mundo de boa parte do judiciário brasileiro, a fábula vale mais que a palpável realidade.

Essa dissociação da realidade é que pode explicar as recentes declarações da ministra do STF, Cármen Lúcia. Com a afirmação de que apenas a justiça das pequenas cidades do interior erra a ministra aparenta o desconhecimento completo, total, absoluto, do sistema judiciário brasileiro. A ministra afirmou ainda que o magistrado é um indivíduo recluso e que não acredita que seja possível comprar uma sentença. Como podemos classificar como recluso um magistrado que recebe prêmios da Rede Globo de Televisão, comparece a eventos patrocinados por candidatos tucanos, e acena feito um herói de quadrinhos para a plateia de um show? Seria recluso o magistrado que, às vésperas da consumação de um golpe de estado, almoça com líderes da oposição que prepara esse golpe?

Apenas para citar dois exemplos, poderíamos classificar Moro e Gilmar como reclusos, sabendo do gosto desse último pelos holofotes? Cada um crê no que quer, é verdade. Mas se a ministra realmente acreditasse tanto na imprensa quanto diz talvez pudesse acompanhar a venda de sentenças em tribunais pelo Brasil afora, inclusive com a condenação de desembargadores, como aconteceu recentemente no Ceará.

A ministra já declarou, certa vez, que o cinismo havia vencido a esperança e que o escárnio vencera o cinismo, num voto muito mais político do que jurídico. Suas declarações recentes sobre a importância e a imparcialidade da imprensa e sua colocação da justiça num pedestal quase divino, uma justiça que não erra, a seu ver, nos fazem pensar melhor sobre suas palavras. Estou quase acreditando que o cinismo venceu a esperança e que o escárnio venceu o cinismo. As declarações da ministra, que prefiro acreditar como ingênuas, beiram o cinismo. Se não for isso, é o mais completo escárnio contra nós, meros mortais, distantes desse reino encantado do judiciário brasileiro.

A ministra acredita também que as instituições ainda estão funcionando plenamente, e nisso ela tem razão. O encontro entre Temer e Cunha é uma prova disso. As instituições funcionam tão plenamente que um indivíduo que ocupa ilegitimamente a Presidência da República encontra com outro afastado da Presidência da Câmara dos Deputados pelo próprio STF, para tratar de uma “agenda institucional”.

As instituições funcionam tão plenamente que a Câmara dos Deputados continua sendo dirigida por Cunha, um personagem do mundo do crime, de acordo com as denúncias contra ele apresentadas.

Talvez a ministra tenha razão, ainda, na sua declaração de que “enxergo erros apenas na justiça de pequenas cidades do interior. Lá, se um juiz é pego num bar bebendo às 10 da manhã, ele é exonerado e expulso do município, me disseram. O campo funciona de outra forma.” Foi o que “disseram” para a ministra, já que no seu mundo encantado não parece haver lugar para o Brasil real.

No mundo de Cármen Lúcia, se um ministro do STF é pego almoçando com líderes da oposição ou se encontrando furtivamente com um presidente ilegítimo, ele não corre, nem de longe, o risco de ser exonerado e expulso do país.

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