O poder da banalização

 "O que eles falam na TV sobre os jovens não é sério"
(Charle Brown Jr.)

O Poder da Transformação que tem o hip-hop também é transformado pela mídia, que durante muito tempo duvidou dessa cultura e sub-valorizou-a.

Enquanto o breack era a forma de protesto nos guetos norte-americanos, nos palcos das emissoras de TV, um garoto mostrava alguns destes passos para o mundo e já se destacava entre 5 irmãos. Iniciava-se aí a carreira de Michael Jackson.

Cidade de Deus, antes de ser o nome do filme indicado ao Oscar, é o nome de um bairro onde mora o raper MV Bill e muitas outras famílias que comungam de mais uma coisa: que o filme acaba estereotipando a comunidade; que não mostra com fidelidade, até porque Cidade de Deus não foi filmado na Cidade de Deus.

Cidade dos homens, uma mini-série produzida pela TV Globo, foi uma espécie de versão para a TV do referido filme. É mais uma prova de que a periferia hoje é o centro das discussões. A elite quer saber e entender como nós pensamos, como nos organizamos. Nunca teve interesse antes. Hoje, motivada pelo aumento da violência, arrota teorias e soluções para o fenômeno. Num dos episódios, um garoto explicava como se dava a disputa do tráfico de drogas.

Mas o pior é o seriado da rede Record com o nome Turma do Gueto, protagonizado pelo ex-pagodeiro e apresentador Netinho (que, ao contrário de mim, diz ser 100% Cohab e nem em Carapicuíba mora mais). No seriado, ele vive o papel do professor Ricardo. Dias antes da estréia do programa, recebi muitas mensagens, dizendo que viam pessoas negras em novelas desempenhando apenas o papel de motoristas ou domésticas e isso mudaria a partir desse programa.

Gostaria de ver também na vida real pessoas negras concorrendo a cargos em igualdade. Não adianta mostrar isso apenas na TV, como no seriado Um Maluco no Pedaço, estrelado pelo Will Smith no papel de um jovem cuja mãe (como qualquer outra) acha que o filho deve ter uma boa educação, por isso tira ele de seu bairro pobre e o manda para morar junto do seu tio, um advogado bem sucedido que faz parte de uma minoria negra elitizada, sugerindo que os rapers protestam em causa própria; se mudam de situação, esquecem a luta comum.

O seriado Turma do Gueto traz ainda um personagem que só fala com rimas, como se rimar fosse um cacoete, um vício. Mesmo com a consultoria do DJ Hum e a participação de Afro X, do 509-E, o programa é tão real quanto qualquer outra telenovela da TV.

A receita de transformar o raper Xis no "Supla da periferia" não funcionou. No princípio, ele contou inclusive com a aversão dos rapers, que, mais tarde, se tranqüilizaram com uma declaração do Mano Brown, que disse não condenar a participação do raper.

O problema não está em participar de um programa, de uma entrevista. Gog diz que participará de um programa de TV se este for ao vivo como o Jô Soares. O importante é as pessoas terem critérios para participarem dos programas. SNJ recusou participar do Domingo Legal por não permitirem que cantassem ao vivo com DJ. A produção exigia play back.

A mesma emissora exibe o seriado norte-americano OZ, que mostra de forma impactante o cotidiano da prisão experimental Emerald City, na qual os conflitos étnicos e de facções são uma ótima ficção.

Para terminar de falar na televisão, o programa Yo MTV Raps é uma conquista, pelo tempo que levou para ter uma versão nacional, inicialmente apresentado pelo VJ Rodrigo, seguido pelo KLJ e, atualmente, pelo Thaide. Vai ao ar à meia-noite da terça-feira e é reprisado domingo, à uma hora da manhã. Ainda conta com um último reprise ao meio-dia do domingão. Com exceção desta última, todas as outras apresentações não são para as pessoas da periferia, que levantam cedo para ir pra escola ou pro serviço. Será que eles imaginam que o rap não tem produção para três programas distintos na semana? Ou que o hip-hop só é retratado nos vídeo clipes? Onde estão as matérias sobre grafiti, discotecagens, posses, lowriders, mc's, b.boys?

A internet se vale da qualidade de ser barata, não ter limites de tempo ou espaço como a TV ou os meios impressos, mas de que vale isso se os grandes portalões de hip-hop só publicam matérias e entrevistas de gente já consagrada? O mesmo acontece com as revistas especializadas seja de rap ou de grafiti. Onde estão as técnicas alternativas como o airbrush? Onde estão os grupos que estão começando?

É como as rádios comunitárias passarem a cobrar jabá para tocar as músicas, como fazem as rádios comerciais. Pras rádios, "é só alegria!".

O CD dos Racionais, "Nada como um dia após o outro dia", é outro exemplo do poder do rap, que mesmo sem a divulgação na mídia é o mais vendido no Brasil. Sem o grupo se vender, suas letras ganham relatos sobre o problema da fama, como diz o grupo sobre o drama do negro que vive entre o sucesso e a lama.

Neste cenário, a literatura marginal surge com força, a ponto de fazer vender milhares de livros de autores que não formulam, que apenas retratam, assim como o personagem principal de Cidade de Deus que queria ser um fotógrafo. A literatura marginal está cheia de fotógrafos que batem fotos do povo e mostram pras elites. Não precisamos de fotos, se somos o próprio quadro. Precisamos de pincéis e bons pintores para adicionar colorido a esta sépia história.

Eu trabalhei durante o dia pra pagar meu estudo noturno no curso de publicidade. Sei que os meios de comunicação enxergam no hip-hop uma fatia de mercado. Não estão nem um pouco preocupados com nossas convicções, com nossa luta. Querem saber se podemos comprar aquela camiseta, aquele tênis.

Eles têm o poder de fazer o Miami Bass virar funk carioca. Eles têm o poder da banalização.

Mas tudo isso é só uma onda que passa. E só quem é vai ficar.

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