“O Que Traz Boas Novas”: Camadas submersas

A fragilidade das crianças, o papel da escola e o imigrante como catalisador são o centro deste filme do franco-canadense Philippe Falardeau

O que chama atenção no desfecho deste “O Que Traz Boas Novas” é a capacidade das estruturas do Estado-burguês reproduzir seus impasses sócio-políticos. Principalmente ao continuar a tratá-los com métodos ultrapassados, conservadores. Torna-se mais grave quando se trata do sistema escolar que educa as novas gerações. É numa delas, localizada em Montreal, capital do Québec, região francesa do Canadá, que o diretor-roteirista Philippe Falardeau situa sua narrativa, envolvendo o refugiado argelino Bashir Lazhar (Mohamed Fellag), os alunos Simon (Émilie Néron) e Claire (Sophie Nélisse) e a diretora da escola Vallencourt (Danielle Proulx).

Não se trata de tema novo. Lindsay Anderson põe em “Se” (1968) os estudantes ocupando uma instituição conservadora inglesa, refletindo a visão da esquerda nos anos 60 sobre o papel despolitizante da Educação no sistema capitalista. Dois filmes atuais menos engajados abordam a mesma questão sobre ângulos diferentes. Thomas Vinterberg mostra em “A Caça” o despreparo da direção de uma escola infantil dinamarquesa ao tratar de um caso de assédio sexual. Já a saudita Haifaa Al-Mansour discute o complexo papel da escola como sustentáculo do Estado-Teocrático e principal esteio da subjugação da mulher e da liberdade do homem.

Papel do educador é instigar o aluno

Falardeau consegue ser mais contundente em sua análise ao introduzir não só o papel da escola no Estado-burguês como a figura do imigrante como o que questiona seu papel na formação dos pré-adolescentes. Lazhar desestrutura pedagogia, métodos e dogmas educacionais ao relacionar-se com os alunos de igual para igual. Não se trata do técnico-educador, mas do instigador, do catalisador de buscas e construções, daí adquirir a confiança, o carinho, o amor deles. Seria isto não houvesse outras questões.

Seu método questionador difere da pedagogia que forma o aluno para o mercado, onde reproduzirá as exigências do sistema capitalista, em sua ânsia desmesurada por lucros. Sem diferenciar as estruturas de produção industrial, agrícola, serviços e financeira, irá perpetuar as falácias de que tudo é indústria por gerar lucros, mesmo sem produzir um parafuso sequer. E confundir o cidadão comum ao chamar de indústria as cadeias econômicas do turismo e do seguro, entre outras. Uma por se valer de monumentos históricos, recantos naturais e vias de transporte que não preservam, só exploram, a outra por suas construções engenhosas de necessidades de proteção, tratando-se apenas de atividades mercadológicas.

É uma visão neoliberal, de sistema financeiro, cheio de “produtos” criados para induzir a especulação, enquanto a mídia e a propaganda alimentam a máquina desejante do consumismo. O aluno, fora da visão de Lazhar, é mais um produto a ser consumido pela estrutura do capital, que o vê como reprodutor de sua engrenagem. Assim a linha de montagem de alunos não o ensina a pensar, a se integrar política e socialmente, a se ver no outro sem preconceito, mas o induz a temer o diferente, a denunciar qualquer afeto, vendo nele uma ameaça, embora bullying e assédio sexual sejam condenáveis.

A escola é que fica em xeque

Duas questões permeiam o filme desde o início: o suicídio da antecessora de Lazhar e sua própria situação como refugiado. A primeira influi no cotidiano da escola, a ponto de traumatizar o garoto Simon. Mas é a segunda, envolvendo Lazhar, que traz para a sala de aula sua visão de imigrante. Devagar ele desvenda o suicídio da antecessora, mesmo enfrentando as resistências de Vallencourt, como o Estado, do status quo e dos pais dos alunos para fazê-lo soterrar o caso. Mas, agindo assim, esquecem das crianças que não sabem como agir em casos de bullying e assédio sexual.

Esta questão é tão crucial que Victor, professor de educação, desabafa dizendo sentir-se tolhido em suas atividades. “Não posso passar o pomada contra queimadura do sol no aluno, sem que pareça assédio sexual”. Nenhum novo método é discutido por Vallencourt nas reuniões pedagógicas para conscientizar as crianças, preparando-as para separar o afeto do assédio e a brincadeira sadia do bullying. A solução dada por Lazhar é a discussão aberta do que houve entre sua antecessora e Simon. A posição da escola fica em xeque por ter fugido ao tratamento real do problema.

Falardeau usa Lazhar para quebrar a imagem do árabe, muçulmano, refugiado político, na sociedade franco-canadense. Ao invés de ser ameaça à estrutura sócio-política do Canadá e da escola, ele é o ponto de equilíbrio, o que motiva as mudanças de visão sobre a relação de sua antecessora com Simon. Mas é este papel de unificador que põe em xeque o sistema de ensino conservador, a permanência da pedagogia do segredo, da manipulação do real e da continuidade de seu trabalho na escola. Se o novo desestabiliza para equilibrar, também desnuda as fragilidades do que é apenas aparência.

“O Que Traz Boas Novas”. (“Monsieur Lazhar”).
Drama. Canadá. 2011. 94 minutos.
Música: Martin Léon.
Fotografia: Ronald Plante.
Roteiro: Philippe Falardeau, baseado na peça homônima de Evelyne de La Cheneliéte.
Direção: Philippe Falardeau.
Elenco: Mohamed Fellag, Sophie Nélisse, Émilien Néron, Danielle Proulx, Vicente Millard.

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