“O Sol do Meio Dia”: a cara do Brasil

Diretora paulista Eliane Caffé mostra outra face do povo brasileiro ao centrar sua narrativa em personagens do Norte do país.

No universo dos personagens de “O Sol do Meio Dia”, da cineasta paulista Eliane Caffé (“Kenoma”, “Narradores de Javé”), a segunda chance é algo inimaginável. Eles não se desgrudam do cotidiano. Alguns como Artur (Luiz Carlos Vasconcelos) e Ciara (Cláudia Assumpção) são dominados pelo passado, outros não se prendem a nada, a exemplo de Matuim (Chico Diaz. Nenhum questionamento sobre o fardo que carregam por culpa sua ou imposto pela sociedade que os empurram para as bordas.

O universo desses homens e mulheres, configurados por Artur, Matuim e Ciara não é diferente dos milhões de moradores das entranhas da Amazônia. Mestiços, de rostos vincados pela dor e frustração, lutando para escapar às armadilhas naturais e engendradas pela sociedade, eles transitam pelos espaços que lhes são comuns. Com isto revelam uma face do Brasil, vista na TV como caricatura de um país que continua não se conhecendo.

E centra-se em Matuim, o barqueiro que navega por águas perigosas, no ex-presidiário Arthur, que, amargurado, decide acompanhá-lo, e em Ciara, às voltas com a filha rebelde, entregue à prostituição. Nenhum deles espera alcançar mais do que o cotidiano lhes oferece. Mas, ainda assim, são envolvidos pelo incessante recomeçar. Uma dialética ditada pela própria existência, não ao objetivo a ser alcançado pelos personagens, como ocorre nos enredos hollywoodianos.

É a partir daí que Eliane Caffé e seu co-roteirista Luiz Alberto Abreu criam o universo dos personagens e a força que os movem. Matuim, mais emblemático, surge na tela num entrevero com a mulher que logo desvenda seu segredo. A estranha peruca por ele usada. Espécie de disfarce para seus males e rejuvenescimento, ela o fragiliza e muitas vezes o ridiculariza perante seu oponente. Além disso, ele se entrega à vida numa voracidade que o faz perder o equilíbrio. É ao mesmo tempo malandro e ingênuo pela forma como se envolve em situações amorosas ou de amizade.

Ritmo do Norte; não volúpia do Sudeste

Não menos complexo é Artur, com seu olhar pesaroso, de quem carrega a culpa do mundo, ele reflete mais sobre o que faz. Mas para ele, ao contrário de Matuim, reerguer-se é mais difícil. Enredado no passado, decide soterrá-lo incendiando sua casa. Daí parte para o que der e vier. Seu encontro com Matuim é o de dois desenraizados. Partem no barco de Matuim sem garantia alguma de retorno. E os entrechos estruturados pela dupla de diretor/roteirista não atraem o espectador para falsas pistas. Tudo é inesperado.

Daí a diferença do enredo com objetivo a alcançar e o de entrechos cujas sequências se sucedem sem que o espectador consiga decifrar o que virá em seguida. Nisto se constitui a beleza deste “O Sol do Meio Dia”. Há uma sucessão de situações, acontecimentos, confrontos, descobertas e um desfecho inusitado. Este é ditado pela troca de cenário – do rio e da floresta para o de cidadezinhas, com sua arquitetura popular, prostíbulo, que mais parece motel de beira de estrada, e, finalmente, Belém, com seu traçado urbano peculiar, mercado popular, embarque de mercadorias no cais, e gente com face do Brasil profundo.

Neste há uma lentidão, um fluir distante da volúpia urbana do Sul e do Sudeste. É outro país, com fala, gestual, cultura não pasteurizada, sem ânsia de glamour. Em cada face há o africano, o índio, o europeu e a mistura deles. Artur, Matuim e Ciara vão definir sua vida neste espaço. A câmera de Caffé não os deixa escapar. Matuim, que “leva tudo na flauta”, irá defrontar-se com a realidade. Ciara não aceita ser tratada como objeto de desejo, descartável ou pronta para viver de promessa. E Artur, entregue a seus dilemas, fugindo de si mesmo e de quem o ama, terá de desentranhar seu passado.

Cada um deles tem seu instante de verdade. Conta mais que o objetivo alcançado. É o ser humano aceitando-se como se construiu, queira ou não. Então, não há uma história propriamente, mas entrechos que se sucedem, criando um fluxo narrativo ditado pelos personagens e situações que os enredam, não os deixando negligenciar o que criaram na relação entre eles e o meio em que vivem. Matuim enfrenta-o ao ser expulso do açougue em que trabalha; Ciara ao deixar a filha; Artur ao não poder reprimir sua paixão por ela. Assim, vários caminhos se abrem, para o bem deles ou não.

“O Sol do Meio Dia” é um filme que se vê com atenção, tentando mapear o ambiente, os personagens, as situações, o fluir das sequências e dos entrechos. E terminando por se sentir gratificado, por uma cineasta que tratou do moto-perpétuo em “Kenoma”, da memória dos moradores de uma cidade prestes a ser inundada pelas águas para dar lugar a uma represa (“Narradores de Javé”). E contribui por mostrar um Brasil adverso do mostrado nas novelas da TV e em filmes urbanos, com personagens deslocados do Brasil profundo. Escapar a esta linha é uma grande virtude.

“O Sol do Meio Dia”. Drama. Brasil. 2009.106 minutos. Roteiro: Eliane Caffé/ Luiz Alberto Abreu. Fotografia: Pedro Farkas. Elenco: Chico Diaz, Luiz Carlos Vasconcelos, Claúdia Assumpção, Ary Fontoura.

(*) Prêmio da Crítica – Melhor Filme Brasileiro na Mostra de São Paulo 2009; Prêmio Melho Ator: Chico Diaz, Luiz Carlos Vasconcelos – Festival do Rio (2009).

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