O vírus da vaidade

Para um médico e político que fez carreira com olhos voltados apenas para o sistema privado, Mandetta desempenhou com relativo louvor o papel de defensor da relevância e da importância do SUS, o Sistema Único de Saúde, no combate à pandemia.

(Reprodução)

“Sessenta dias tendo de medir palavras. Você conversa hoje, a pessoa entende, diz que concorda, depois muda de ideia e fala tudo diferente. Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né?”

O desabafo é de Luiz Henrique Mandetta, em entrevista à Veja, nas suas últimas horas como ministro da Saúde. Mandetta não é santo nem herói – mesmo em um país carente de salvadores da pátria – e vem de uma família com longa tradição na velha política em Mato Grosso do Sul. Como médico, fez carreira no sistema privado de saúde. Como político, viveu inicialmente à sombra do seu primo, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS), e depois habitou o baixo clero da Câmara dos Deputados, onde também vivia Bolsonaro e alguns outros, tão desvalorizados quanto.

Mandetta chegou à Esplanada dos Ministérios com apoio de nomes como o do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (afora os caciques do MDB, difícil em pensar em outro rosto para a velha política fisiológica do Centrão), e Onyx Lorenzoni (RS), um daqueles que só viram a luz da política na esteira da popularidade de Bolsonaro.

Há exatos quatro anos, um Mandetta em tom jocoso foi às redes sociais postar o chavão “Tchau, querida”, antecipando seu voto a favor do impeachment da presidente Dilma, que aconteceria, no dia seguinte, no plenário da Câmara. Em 16 de abril deste ano, usou o mesmo Twitter, agora em tom solene, para anunciar sua demissão na Saúde.

Do político desconhecido da tarde do impeachment, em 2016, ao ministro mais popular do governo Bolsonaro, até a tarde desta quinta-feira, Mandetta passou três anos e dez meses como um nome a mais em Brasília.

Não é santo nem herói, mas tinha formação técnica – embora seja ortopedista e não infectologista – e bom senso para entender o tamanho do tsunami que o novo coronavírus representa para o Brasil e para o mundo. Demonstrou, nos últimos 60 dias, discernimento para seguir, como ministro, as orientações da Organização Mundial da Saúde.

Para um médico e político que fez carreira com olhos voltados apenas para o sistema privado, Mandetta desempenhou com relativo louvor o papel de defensor da relevância e da importância do SUS, o Sistema Único de Saúde, no combate à pandemia. Mostrou também transparência ao assumir que o colapso do SUS seria questão de tempo, especialmente se não tomadas as medidas de contenção para o avanço do vírus.

A grande virtude de Mandetta, como ministro, foi não ceder à lógica errática que permeia o Palácio do Planalto há quase um ano e meio. Ele adotou a cartilha da OMS e não aceitou trocá-la por outra, a de Bolsonaro. Nas coletivas diárias, especialmente antes da intervenção militar de Braga Netto, da Casa Civil, suas falas em favor do isolamento social e na contramão das declarações do presidente, deixavam claro que ele não é terraplanista nem adepto da estapafúrdia teoria de uma criação maléfica made in China para prejudicar o Brasil e os Estados Unidos.

É preciso, no entanto, clareza num ponto: não há nada de heroísmo em seu currículo nos últimos dois meses. Seu mérito foi demonstrar bom senso e racionalidade no enfrentamento à pandemia, o mínimo que se espera de um ministro à frente de uma pasta tão estratégica como a da Saúde. Como diz o ditado, ‘em terra de cego, quem tem um olho é rei’.

Diante do negacionismo (ou burrice, como bem mencionou Hélio Schwartsman, em sua coluna da Folha, no dia 12 de abril) de Bolsonaro e de seu núcleo ideológico, a simples postura de bom senso e as atitude técnicas e coerentes foram suficientes para alçá-lo ao patamar de pop star, algo próximo à figura do novo herói nacional. O suficiente para fazer o DEM sonhar com a sucessão presidencial em 2022. “Yes, nós temos nosso Moro”, devem escrever os caciques da antiga Arena em seus grupos de WhatsApp. Mas é preciso calma, demistas. Há muita água e incertezas pela frente.

Para alguns analistas, Mandetta tinha uma estratégia clara: como guardião da cartilha da OMS, sua saída e uma eventual mudança de rumo na condução da crise recairia (e recairá) sobre os ombros de Bolsonaro. É só uma questão de tempo. Como ainda vivemos o início da ‘escalada da curva das mortes’ provocadas pelo novo coronavírus, Mandetta deixou a gestão do presidente em xeque.

A explosão iminente no número de mortos seria (será) o xeque-mate. Tínhamos um ministro jogando xadrez, enquanto o presidente só domina o jogo da forca. Mandetta mexia um peão, Bolsonaro desenhava o corpinho. O ministro movia um cavalo, o presidente rabiscava os bracinhos. Um encurralava a rainha, o outro fazia as perninhas.

Como enxadrista, Mandetta vinha muito bem. Tinha o apoio dos militares palacianos (aqueles que se julgam o poder moderador da República hoje em dia), do Congresso, dos outros ministros “estrelas”, como Guedes e Moro, dos governadores e prefeitos e, por fim, do Supremo Tribunal Federal. O rei estava isolado em seu quadrado no tabuleiro, contando apenas com uns dois peões ideológicos para fazer coro às suas sandices negacionistas.

Mas Mandetta escorregou nos últimos dez dias e se colocou em situação de xeque para o papel de novo herói nacional. Embora não contaminado pelo corona, foi acometido por um vírus quase tão perigoso quanto: o da vaidade. A partir do ‘dia do fico’, na segunda-feira passada, ele começou a errar o tom e foi irritando aliados estratégicos dentro e fora do Palácio do Planalto.

Teve a chance de recuar, quando mediu palavras e se disse parte de um time liderado por Jair Messias Bolsonaro, mas a vaidade, por fim, falou mais alto. Na entrevista ao Fantástico, no último domingo, Mandetta disse o que todo mundo já sabia, mas que não poderia ser dito por ele.

Ao dizer que o brasileiro não sabia se devia escutar o presidente ou o ministro, Mandetta se colocou no mesmo patamar do ex-capitão, um gesto claro de insubordinação na lógica dos militares que até então torciam o nariz, mas ainda o apoiavam.

Pior: movido pela vaidade, ele mexeu com o ego de Bolsonaro, outro igualmente hospedeiro do mesmo vírus.  É provável que a tática de enfrentamento aberto até fizesse sentido no xadrez que ele tinha diante de si, mas o tabuleiro tem mais de um lado.

Ao fim e ao cabo, é difícil saber quem levou a melhor, se o xadrez ou a forca. Embora haja uma forte reação pública contra sua demissão, ela já era pedra cantada e vista como natural.

Fato é que a indignação perdeu força e, com isso, ele desceu alguns degraus na sua sonhada escalada a herói. Para a tristeza dos caciques do DEM e alento daqueles que sabem que já temos candidatos demais a salvadores da pátria no Brasil.

Na tarde deste 16 de abril, Bolsonaro, que se elegeu como o messias salvador de um Brasil acima de tudo e de um Deus acima de todos, deu mais um passo ao abismo, reforçando seu negacionismo e indicando um ministro-capacho. Aos poucos, o ex-capitão vai trocando seu lema de campanha por outro, bem mais perigoso para todos os brasileiros. Diante do coronavírus, o que vale é ‘Economia acima de tudo. Gripezinha acima de todos’.

Nelson Teich, o capacho, é uma voz vacilante e, como os seis primeiros segundos falando como titular da Saúde, mostrou que está longe de inspirar a liderança que a ameaça da pandemia exige. Mas o novo ministro, que se diz em alinhamento completo com Bolsonaro, merece uma análise exclusiva, só sobre ele.

Artigo elaborado em coautoria com Ed Machado é jornalista e consultor em comunicação e publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo.

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