OIT, capitalismo de plataforma e a voz das ruas

Se o século 21 quiser ser mais do que uma distopia high-tech com corpos esgotados e direitos rasgados, ele terá que ouvir o grito dos trabalhadores e trabalhadoras de plataforma

Foto: Agência Brasil

Por décadas, fomos levados a crer que a tecnologia era, por si só, um caminho para o progresso humano. A promessa de um futuro no qual o trabalho seria menos extenuante, mais autônomo e recompensador. No entanto, o que se impôs foi outra realidade: a tecnologia a serviço da financeirização, do lucro máximo e da precarização do trabalho. A cultura do capitalismo de plataforma, símbolo dessa nova fase do neoliberalismo digital, não apenas redefiniu a forma como trabalhamos — ela feriu profundamente o tecido social e os direitos conquistados a duras penas pela classe trabalhadora.

O que hoje se apresenta sob os nomes reluzentes de Uber, iFood, 99 ou Amazon Mechanical Turk nada mais é do que a face atualizada da velha exploração. Trata-se da velha lógica do capital travestida em inovação: vender autonomia onde há subordinação, ofertar flexibilidade onde reina a instabilidade, prometer empreendedorismo onde impera o desamparo. A plataforma diz “seja seu próprio chefe”, mas omite que, na prática, o trabalhador está à mercê de algoritmos invisíveis, metas inatingíveis e uma remuneração instável e, muitas vezes, humilhante.

Na divisão internacional do trabalho, essa lógica se mostra ainda mais perversa. No Sul Global, onde o desemprego estrutural e a informalidade são regra, a gig economy [1} surge como única alternativa de sobrevivência. No Brasil, segundo dados do IBGE, 41% da população ocupada está na informalidade, e mais de 1,5 milhão – ou 1,7% da população ocupada no setor privado – por meio de aplicativos de serviços e, 628 mil, nas plataformas de comércio eletrônico.  Essa explosão do trabalho intermediado por aplicativos se dá justamente onde o Estado mais se ausenta — sem direitos trabalhistas, previdência, proteção à saúde ou garantias mínimas de renda. O custo da flexibilização quem paga é o entregador, o motorista, o programador precarizado.

A precarização não é um efeito colateral. Ela é o modelo. O trabalho em plataforma se constrói sobre três pilares: ausência de vínculo empregatício, responsabilização individual dos riscos e opacidade algorítmica. O resultado é um exército de trabalhadores adoecidos, desprotegidos e solitários — sem sindicatos fortes, sem previdência, sem jornada definida. Uma massa descartável, empurrada para o trabalho sem direitos, enquanto as corporações acumulam lucros bilionários.

É nesse contexto que a 113ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho (CIT), da OIT, ganha relevância histórica. A aprovação, ainda que parcial, de uma convenção internacional sobre a regulação do trabalho por plataformas digitais é um sopro de esperança — não apenas para os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, mas para milhões de homens e mulheres que enfrentam a mesma realidade em todos os continentes. Trata-se de um gesto concreto contra a naturalização da precariedade. Um passo importante rumo à construção de um novo marco legal e internacional que reconheça o que é evidente: plataformas são empresas, e trabalhadores de aplicativos são trabalhadores — e como tal, devem ter seus direitos reconhecidos.

E não por acaso, entre os que levantam a voz em Genebra, está o movimento sindical brasileiro — herdeiro de uma longa tradição de lutas que ajudaram a moldar o Brasil moderno. Foi o sindicalismo combativo e organizado que conquistou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que enfrentou a ditadura, que defendeu a democracia, que lutou por direitos universais e políticas públicas de proteção social amaradas em nossa Constituição Federal. Agora, mais uma vez, cabe ao sindicalismo brasileiro — representado por centrais como a CTB e outras — erguer-se como uma das principais trincheiras contra o caos que o capitalismo de plataforma tenta impor como nova normalidade.

Ao denunciar as novas formas de exploração e ao reivindicar, em pleno fórum internacional, o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores de plataforma, o sindicalismo brasileiro cumpre não apenas uma função de denúncia, mas também de reconstrução. Reconstrução de uma ideia de trabalho digno. Reconstrução da confiança da classe trabalhadora em suas organizações. Reconstrução da esperança no papel transformador da política.

Esse é um desafio profundo: reconquistar corações e mentes. Em um país em que a reforma trabalhista de 2017 atacou os pilares da CLT, desmontou o financiamento sindical e abriu caminho para a informalidade e a desproteção, é necessário mostrar que o sindicalismo segue vivo, necessário e contemporâneo. Que é possível defender um novo futuro do trabalho sem abrir mão da dignidade humana. Que o trabalho decente é um direito, não uma concessão. Que a CLT — longe de ser um entulho — é um patrimônio que precisa ser atualizado e revigorado à luz dos novos desafios, sem jamais perder sua essência: proteger o trabalhador do poder desmedido do capital.

Em um tempo em que a ideologia do “empreendedor de si mesmo” seduz tantos com promessas vazias, cabe aos movimentos populares e sindicais disputar o imaginário coletivo. Mostrar que nenhum algoritmo substitui o valor da solidariedade, que nenhum aplicativo vale mais que uma rede de proteção, que nenhuma tecnologia deve estar acima da vida humana.

Se o século 21 quiser ser mais do que uma distopia high-tech com corpos esgotados e direitos rasgados, ele terá que ouvir o grito dos trabalhadores e trabalhadoras de plataforma. Eles, que carregam nas costas o presente e o futuro das cidades, exigem mais do que migalhas e discursos. Exigem e merecem o óbvio: trabalho digno, proteção social, reconhecimento e futuro.

Que a convenção da OIT seja aprovada. E que seja apenas o começo de um novo ciclo de resistência, organização e conquistas para quem sustenta o mundo com seu trabalho.

NOTA

[1} A economia gig é caracterizada por contratos de curto prazo ou freelances, permitindo flexibilidade aos trabalhadores para escolherem tarefas e horários.

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