“Onde os Fracos Não têm Vez”

Igual à realidade que nos cerca


Irmãos Joel e Ethan Coen criam, em seu filme, um universo paralelo ao do cotidiano atual para mostrar a perda dos valores morais e éticos no mundo neoliberal e globalizante e o quanto foram subst

Uma das magias do cinema é transformar imagens em realidades aparentemente distantes do cotidiano do espectador. Cria um mundo à parte num espaço bidimensional, com regras próprias e nuances difíceis de serem assimiladas durante a exibição do filme. Nesse espaço, em épocas distintas, se movem personagens com aparência idêntica às de quem está diante da gigantesca tela. E se submetem a imperiosos ditames, a ponto de haver uma inter-relação entre ambos. Com a diferença de que ao final de duas horas toda uma situação estará resolvida, para o bem ou para o mal, enquanto para quem está sentado numa confortável – nem sempre – poltrona, os conflitos irão perdurar por toda uma vida. Mas, há também a sensação de que o visto transcende a ficção e se impõe ao mundo real. Não é outra a percepção que se tem ao ver “Onde os Fracos Não têm Vez”, dos irmãos Ethan e Joel Coen.


 


           


A realidade com que o espectador se depara é crida pela tela em projeção cinemascope, numa cidadezinha do Novo México, habitada pela classe média baixa americana. Tudo ali é agressivo, tenso, com pouca ou nenhuma chance para evasão. A paisagem que a rodeia tem vegetação amarelecida, quase agreste, com o rio magro e assoreado escoando devagar. E as pessoas movem-se nesse espaço, esquecidas de qualquer possibilidade de sonho. Vivem, portanto, num limbo de difícil assimilação. Um retrato pouco condizente com as noções de grandeza e riqueza publicizadas pelo Império da Águia. Pouco difere do ambiente mostrado nos westerns de Sam Peckinpah.


            


Realidade da tela e do cotidiano se equivalem
            
           


É neste ambiente, em si hostil a humanos e coiotes, que os personagens retirados pelos irmãos Coen do romance “”Onde os Velhos não têm Vez(No Country for Old Men), do americano Cormac McCarthy se completam. De uma maneira inusitada, com normas rígidas, adversas às costumeiras mostradas em obras que procuram mais criar códigos do que transfigurar uma realidade em mutação. Os códigos saídos do romance de McCarty em princípio são duros de engolir, pois transcendem a uma realidade que falsamente achamos que ainda existe. E o filme os coloca em perspectiva, de forma a que entrem pela retina do espectador e se aloje em sua mente, chamando-o para um conflito entre o que vê na tela e o que a vida se lhe oferece e ele tenta, por todos os meios, ordenar. Mas a esta altura já percebeu que é quase impossível fazê-lo.
             



Então a realidade da tela e a do cotidiano se equivalem. É preciso enxergar este último como algo em mutação e a primeira como o que já se processou. E na tela é justamente isto que se vê. Em três vertentes, elas são apresentadas, nas figuras do velho xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), do caçador, ex-combatente no Vietnã, Llewelyn Moss (Josh Brolin), e do “ser anunciado” Anton Chigurh (Javier Borden). São três seres transitando em mundos separados, unidos apenas pelo espaço da ação. A de Bell é a das regras escritas, códigos de honra, válidos para as relações profissionais, familiares e profissionais. Um mundo onde as linhas divisórias entre o bem e o mal, o crime e a honestidade, devem ser bem demarcadas, para que a sociedade sobreviva a seus fantasmas, medos e loucuras. A de Moss há muito rompeu os códigos, regras e fantasias, diante da brutalidade da guerra do Vietnã, dos conflitos urbanos e da vida miserável a que foi submetido depois das promessas de desfrutar o paraíso. Qualquer oportunidade que se lhe apresente, será o suficiente para fazê-lo mudar sua visão de uma época – os anos 60 – em que as mudanças estavam à altura da mão.


               



Vilão é um ser preparado para os tempos atuais



              


Por último, a vertente de Chigurh. É um ser dos novos tempos, com seus códigos mínimos, que mudam de acordo com as circunstâncias. Não há linha a obedecer ou manter, segue o vai-e-vem entre a sobrevivência e a tarefa cotidiana. Está mais preparado para os emoldurados anos neoliberais, com suas maquiagens, consumismo, excitações regadas a estimulantes, frias relações amorosas e visões de futuro projetadas por edulcorados comerciais de TV, que seus contrapontos, Bell e Moss. Vive apenas o momento, centrado na ação, às vezes de sobrevivência, na maioria das vezes de caçada. Mas pode ser visto também como a “besta”, “anjo exterminador”, cuja falibilidade não pode ser analisada com base em parâmetros da realidade vivenciada pela geração de Bell, combatente na Segunda Guerra Mundial ou de Moss, fruto da geração de combatentes na guerra do Vietnã.


             


Os parâmetros para entender Chigurh estão nas ruas povoadas de seres enfiados em roupas de grife, penteados que os diferenciam do grosso da massa, da aparência desligada da realidade circundante. Em seu vocabulário mínimo e reações primitivas, do olhar em volta apenas para chegar ao lugar determinado. Com a vantagem de fazer uso de tecnologia destoante da usual. Estes três personagens fazem de “Onde os Fracos não Têm Vez” um filme a se ver como obra sem matizes visíveis. Se olhado superficialmente é a história de um caçador que se apodera de dois milhões de dólares num descampado, cheio de cadáveres, e é perseguido por um caçador de cabeças psicopata.  Entre eles há um velho xerife que, ao invés de elaborar um plano de captura de ambos, tece letárgicos comentários sobre honra e legalidade, mostrando-se incompetente para enfrentar os novos códigos, surgidos das relações sócio-econômicas que põem o dinheiro, o consumo e o prazer como centro da natureza humana.


             


Filme aborda a perda do respeito pela fronteira



             


Mas quando se aprofunda, tentando olhar para além da trama bem urdida pelos Irmãos Coen, percebe-se que há outro filme a ser visto. A paisagem agreste, mostrada em tomadas amplas, define o vazio das vidas que ali se movimentam, guarda lembranças dos velhos westerns, porém, as divisas bem delineadas neles existentes cederam lugar aos espectros dos espaços cambiáveis. As fronteiras são qualquer lugar a ser ultrapassado. Basta que se queira buscar algo para além do que foi demarcado por tratados, leis e mapas. Esta noção está presente em vários filmes americanos atuais. Não há mais fronteiras, como se viu em “Missão Impossível 3”, em que o espião vivido por Tom Cruise busca o inimigo em qualquer país, sem pedir licença para entrar em suas fronteiras. O mesmo se dá com Chigurh, Moss e Bell, que entram e saem do México a seu bel prazer. O lugar do homem é, assim, lugar algum, ou todo lugar, como se os cidadãos dos EUA fossem cidadãos de todos os países, não precisando se submeter a nenhuma lei da imigração estrangeira.


                



Suas andanças refletem a globalização, a noção de que, ainda que em ação ilegal, criminosa ou falsamente oficial, podem usufruir do ir-e-vir, condizente com os códigos impostos pelo I Mundo, notadamente os EUA, que usaram espaço aéreo de países europeus para transferir soldados afegãos e iraquianos para Guantánamo, aparentemente sem autorização de nações soberanas. Antigamente, (veja “Os Implacáveis”, de Sam Peckimpah), a fronteira era o lugar da evasão, da redenção. Em “Onde os Fracos Não Têm Vez” é o espaço de trânsito a serviço de uma tarefa contraditória, pois se usada por imigrante do Terceiro Mundo se torna uma ação punida pelos agentes de fronteira. Ainda que se trate de ficção a idéia de livre-trânsito é o principal conceito da globalização. Uma vez utilizado para o fluxo midiático, principalmente da internet, o pode ser também para a posse de qualquer espaço geográfico. Um tema pouco observado, mas candente nos tempos atuais.


                 


Noção de ”livre fluxo” incentiva posse de dinheiro


                 



Esta noção de “livre fluxo” é o que determina a ação de Moss ao se apossar de dois milhões de dólares dos traficantes, mortos em confronto num descampado. Ao contrário dos vilões hollywoodianos que sonham com uma folgada vida no Sangri-lá além fronteira, notadamente no México, ele não projeta ganhos com o dinheiro. Perambula com ele de um lado ao outro, de um estado ao outro, de um país ao outro, gastando-o enquanto escapa de Chigurh. Nem à mulher, Mary Jane (Kelly Macdonald), promete uma vida melhor. O dinheiro assume tão só o aspecto de talismã para ambos.  Não tem uso determinado, o que possa impulsioná-lo a ir em frente; é apenas algo através do qual tenta provar a si mesmo que é capaz de manter, ficando igualmente vivo. Não serve para, inclusive, construir seu futuro com Mary Jane. E vira, deste modo, uma maldição, pois Chigurh está sempre a centímetros dele.


                  



Pela ótica de Moss, o aprendizado obtido no Vietnã é suficiente para dotá-lo da engenhosidade necessária para enfrentar o inimigo implacável.  Usa armas com destreza, variado espaço de fuga, alguns bem visíveis, liberdade para ultrapassar fronteiras e a simpatia do xerife Bell a seu favor. O dinheiro do qual se apropriou não pertence a ninguém, por se tratar de receita do tráfico, e com estas idéias se dispõe a enfrentar alguém cuja natureza desconhece. Igual a Bell seu mundo foi tragado para o lixo. Bell pelo menos sabe, acha-se velho, almeja a aposentadoria. Aliás, o romance de McCarthy o tem como centro, fato que os Coen relegaram a segundo plano, dando a Chigurh a primazia. Ele, Bell, percebe a empreitada que o espera.  Analisa a arma usada pela “besta”, o estrago que ela faz, as múltiplas facetas que ele encarna e, por fim, entende que seus métodos lineares, de buscar pistas, investigar,  prender e entregar à Justiça, não são suficientes para o variegado arsenal de ação utilizado pelo desconhecido. E que também não compensa se meter numa briga de gangs para salvar dinheiro manchado de sangue.


                 



Métodos da polícia em todo mundo está velho


                 



No fundo, seu comportamento reflete o da polícia em todo mundo, diante do fenômeno do tráfico. Seus métodos acanhados naufragam diante dos instrumentos, veículos e técnicas de que se valem os chefões da droga. Estão melhor aparelhados, não precisam obedecer a códigos e normas, transitam sem dificuldade e têm para si toda uma estrutura. E ele, Bell, para acompanhar esta flexibilidade  tem de se valer de regras antigas e antiquadas. Até mesmo sua filosofia, sua ética, padece de aberturas. Quando, num momento crucial, fica quase diante de Chigurh, ele se retrai. É um homem de outros espaços, românticos, centrados nas relações entre o bom e o ruim. Chigurh, não, encarna a fusão entre o bem e o mal. Num diálogo curto, incisivo, ele confronta a hesitação do dono de um bar de beira de estrada. Mostra que este não tem claras as ações de sua vida, vacila, desconhece o que o leva a agir de um modo ou outro.  
                  


 


Com diálogos mínimos, os Coen delineiam o perfil do personagem. Para ele, Chigurh, a pessoa tem de ter uma visão clara do que faz e do que fez. Precisa dominar o espaço onde vive. Centrado, ele usa esta reengenharia para executar seus planos. O que vale para ele são os objetivos a alcançar, sem psicologismos, meditações, paradas para inter-relações. Na única vez que o faz, não se perde em rodeios, diz logo o que pretende. Esta objetividade é condizente com o fluxo de mercadorias, de trabalho mecânico, sem recompensa à vista. É o fazer por fazer, mesmo que com eficiência. A ponto de o trabalho transcender o ser humano. Devido a isto, a ser um eficiente “executor” é que ele transcende o espaço de Bell e Moss. Ele não tem ética, caso de Bell, ou relações amorosas, caso de Moss, é tão só alguém que se desincumbe de suas tarefas variando os alvos de acordo com a necessidade.
                  
                   



Crigurh encarna o mal absoluto


                   



Um personagem com estas características precisaria ocupar outro contexto. Não tem raízes, passado ou futuro. Não é um justiceiro, tampouco um bandido à procura de botim, porquanto nada cobiça. A limpeza que faz tanto dos que lhe pagam quanto dos que tentam atentar contra sua sobrevivência, o colocam em outro patamar. Um ser dotado de poderes de tal malignidade encarna o mal absoluto. Nada o detém. Simboliza os tempos neoliberais em que a compaixão é substituída pela eliminação dos adversários, inimigos, aliados ou até mesmo inocentes das mais diversas formas. Das guerras tribais incitadas pelo imperialismo (conflitos africanos), às invasões incrementadas pelo complexo industrial-militar (Iraque, Palestina, Afeganistão), às guerras de gangs no meio urbano, geradas pela concentração de riqueza, à liberdade do fluxo de drogas, criada pelo combate apenas no meio da pobreza extrema das favelas, sem estendê-lo a outros segmentos e estruturas sócio-econômicas. A dubiedade advinda desse comportamento tira do espaço comum a necessária urgência de se combater as raízes desse mal absoluto.
            


 


É uma realidade que o cinema organiza a partir de personagens que se movimentam num espaço conhecido. O meio urbano do interior transitando para o meio urbano dos grandes centros. Tem vida própria e se move segundo regras criadas pela linguagem cinematográfica. O espectador entende que aquele espaço é o da ficção, mas que também pode ser o da realidade, pois choca com tudo o que ele tem em volta de si. Vive em meio aos massacres perpetrados pelo tráfico, a frágil estrutura de segurança do estado burguês, a violência nas relações sociais, de trabalho e afetiva, e principalmente na falta de perspectiva para transcender a este cotidiano.
             


 


Assistir a “Onde os Francos não Têm Vez” é sentir que a realidade organizada pelos Irmãos Coen, a partir do romance de McCarthy, é compreende o mundo que o cerca nesta etapa histórica da humanidade, sem ética ou honra alguma. E perceber que valores novos terão de ser criados para, quem sabe, ter condições de enfrentar os Chigurh que o rodeiam. Com os códigos e métodos à sua disposição será presa fácil e sem futuro à vista. Com o agravante de que as armadilhas e os perseguidores no cotidiano são muito mais variados e astutos do que Chigurh. Sem contar que cada um encerra hoje parte do próprio mal que o cerca. Na visão religiosa seria dizer que a “besta” desceu e se apossou de todos. Na verdade, nada desceu, nem número tem. O que existe foi gerado nos confortáveis laboratórios das transações monetárias e de mercadorias para manter as estruturas que preservam ganhos e miséria.


 



Onde os Fracos Não Têm Vez” (No Country for Old Men). Drama-policial. EUA. 2007. 120 minutos. Roteiro: Joel e Ethan Coen, a partir do romance de Cormac McCarthy. Direção: Joel e Ethan Coen. Elenco: Tommy Lee Jones, Javier Barden, Josh Brolin, Woody Harrelson.

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