“Orestes”, memória e impunidade

A partir de tragédia grega, cineasta paulista Rodrigo Siqueira reconta crimes de 64 e traça paralelo com a violência urbana no Brasil de hoje.

Existem fantasmas e mortos vivos. Existem almas penadas e traidores insepultos. Por mais que se vangloriem de seus feitos a memória insiste em retirar deles a glória. Numa sequência da terceira parte deste “Orestes”, o ex-agente da ditadura militar José Anselmo dos Santos (1942) responde aos gritos à Maria, depois de ela o acusar de ter matado sua mãe Soledad Barrett Viedma, que “ajudou a livrar o Brasil dos comunistas”. E parte para cima dela, mas tanto a jovem quanto os que os circundam o sacrificam, como na tragédia grega Orestia (458 AC), de Ésquilo (525/456).

É desta forma que o cineasta paulista Rodrigo Siqueira estrutura esta mescla de drama e documentário, dividida em três partes: I – Traição, II – Vingança, III – O Julgamento, para traçar um paralelo entre a impunidade dos agentes e líderes da Ditadura Civil-Militar (1964/1985) e dos PMs que executaram 30.000 jovens em 2012, sendo 70% afrodescendentes, segundo a Anistia Internacional. E questiona o porquê da não revisão da Lei da Anistia para punir traidores como Anselmo e PMs mais letais que os bandidos.

Siqueira não se prende ao relacionamento de Anselmo/Soledad, o metamorfoseia na tragédia de Orestes, que matou a mãe Clitenestra por esta ter assassinado seu pai Agamenon. E assume várias identidades no filme, sendo ora Maria, quando se refere à armadilha montada por Anselmo para levar a mãe Soledad, grávida de quatro meses, à morte nas garras do delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933/1979), ora Gilson, julgado pelo tribunal por ter vingado a morte da mãe matando o próprio pai.

Silêncio esconde culpa de Anselmo

Esta construção narrativa centrada em fatos reais, sustentada pela entrevista do ex-marinheiro Anselmo, infiltrado na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), durante a Ditadura Civil-Militar, ao programa Roda Viva, da TV Cultura, de São Paulo, em 17/10/2011, desmonta suas falsas razões para não aceitar sua culpa pela morte de sua companheira paraguaia e de seu filho de quatro meses. Quem surge na TV é o traidor, responsável pela delação de inúmeros resistentes mortos nos porões da ditadura e de outras tantas vítimas, insepultas até hoje por seu silêncio.

Se ele escamoteia, como se isso o apagasse da História, numa sequência um ex-resistente, hoje idoso, entra pelo prédio do DOI-Cod, Centro do Exército, na Rua Tutóia, 921, Paraíso, São Paulo, e identifica o cubículo em que ele e outros companheiros foram barbaramente torturados. Siqueira, assim, denuncia a impunidade, reforçada pelo promotor que acusa Gilson/Orestes, na terceira parte do filme, ao dizer que a “lei da anistia deveria ser revista”, (para punir torturadores e delatores, porque tortura é crime hediondo e imprescritível).

O tema central do filme torna-se, assim, a impunidade. Siqueira traça uma linha demarcatória ao alinhar o crime do agente Anselmo ao dos PMs que executam jovens, ou não, e raramente são punidos. Noutra das sequências, uma defensora pública afirma, diante da afrodescendente Helena, cujo filho foi assassinado pelos PMs, que existe sempre a desculpa de que houve resistência, que o jovem portava arma… O que acaba gerando a tragédia urbana e a guerra civil não declarada.

Clima atual é de puro fascismo

O resultado é o clima de ódio que permeia hoje a sociedade brasileira. Siqueira fecha seus personagens em salas apertadas, pouco iluminadas, para se questionarem mutuamente. Sandra indaga a Helena: Como você sabe se seu filho não matou ninguém?”. Mas logo é questionada pela idosa ao seu lado: ”Você está repetindo uma fala que tem contestação”. E não responde. Então é pressionada pelo ex-resistente, que a acusa de querer liquidar o menor. Depois de hesitar, Sandra se diz a favor da pena de morte.

Este debate cobre toda a terceira parte, que trata do julgamento de Gilson, ou seja, do próprio Orestes, na tragédia grega. O promotor e o advogado do réu terçam fatos e teorias para acusar ou defendê-lo. Um não vê a vingança como razão para o filho matar o pai, cabendo a punição à Justiça, o outro o justifica por ver em seu ato a sanção do que a Justiça não o fez. O que leva Maria, enfim, a enfrentar o algoz de sua mãe, recriando o ato de Orestes.

Toda essa trama encenada por Siqueira, sustentada pela fotografia em claro/escuro, clima opressivo, de Leo Resende Ferreira, mescla várias subtramas: o drama de Maria/Soledad; do ex-resistente na rua Tutóia; de Helena/Sandra; de Gilson/Brasil hoje, mantendo o fio condutor do drama de Orestes. Na sequência em que a massa instiga Maria à vingança, ele usa o coral grego para matizar a tragédia, como era feito na Grécia antiga.

Isto enfatiza a mescla de ficção e documentário, dando realismo às sequências, como os irmãos Taviani (Paolo e Vittorio) o fizeram em “César Deve Morrer” (2013), com presidiários ao invés de profissionais. “Orestes” torna-se, além disso, instigante obra de ideias, de questionamento das estruturas de poder, fugindo às abordagens maniqueístas, de documentários centrados apenas em depoimentos e quando muito de cenas de locais onde os fatos de deram e em documentos de época. Belo passo adiante.


Orestes. Brasil. Drama/documentário. 2015. 93 minutos. Edição: Leandro Sócrates/Rodrigo Siqueira. Fotografia: Leo Resende Ferreira. Direção/roteiro: Rodrigo Siqueira.

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