Os descendentes dos houyhnhnms e yahoos

Após mais uma execução praticada pela “polícia do mundo” em terras alheias, a releitura da obra-prima de Jonathan Swift, conhecida pelo público brasileiro como “Viagens de Gulliver” merece ser revisitada. Ontem a Inglaterra, hoje os EUA. Revezam-se os personagens, mas a história é a mesma com variações na barbárie.

De todas as viagens feitas pelo personagem Lemuel Gulliver, certamente a mais famosa é pelo país imaginário de Lilliput, habitado por “humanos” extremamente pequenos que guerreavam por qualquer besteira. Mas a última viagem, ao país dos adoráveis houyhnhnms e dos odiosos yahoos, seja, talvez, a mais instigante.

O livro, claro, é um romance satírico, escrito na primeira metade do século XVIII, que ironiza a decrepitude da realeza inglesa da época. Todavia, nos capítulos que narram a derradeira viagem de Gulliver, o autor faz uma crítica feroz ao próprio gênero humano, ilustrado por dois animais, o primeiro caricaturado por um parente imaginário próximo chamado de yahoo e, o segundo, uma raça superior, representantes dos ideais iluministas figurados por notáveis cavalos,  conhecidos como houyhnhnms.

Afora esse niilismo do autor, vítima de uma descrença desmesurada com os valores morais da época, é de se refletir a forma de construção dos princípios que, na atualidade, norteiam centenas de milhões de pessoas bombardeadas pelos grandes meios de comunicação e lançadas ao senso-comum da naturalidade de barbáries exibidas intensamente.

Tudo em nome de uma pretensa modernidade que se julga guardiã dos interesses de todo o planeta. Mas o que os yahoos americanos fizeram com Bin Laden foi um simulacro do que ocorreu com Lampião e seu bando em 1938. A volante policial alagoana invadiu o território sergipano, trucidou todo o grupo e entoou loas ao grande feito humanitário por ter liberto o povo do sertão daqueles facínoras. Talvez a única diferença tenha sido a não exibição como troféus das cabeças cortadas. Tenente João Bezerra teve mais coragem. Guardada as devidas proporções, fatos semelhantes acontecem há séculos, por todas as partes, com o agravante de que na atualidade as dimensões são colossais.

Por mais óbvio que possa parecer aos setores democráticos e progressistas, grande parte da humanidade acha normal esse salvo-conduto que têm os EUA para matar pessoas. Enforcaram Saddam Hussein, jogaram Osama ao mar, bombardeiam Kadaffi e seus familiares e até presidentes democraticamente eleitos foram assassinados, a exemplo de Salvador Allende, à margem do direito internacional. Carnificina digna dos desprezíveis yahoos e incompreensíveis aos admiráveis houyhnhnms.

Qual reação teriam estes houyhnhnms se nosso herói Gulliver vivesse em nossa época e narrasse a eles que a inteligência de certa raça de yahoo é tamanha que chegam a fabricar aviões desprovidos de pilotos, chamados “drones”, que servem para bombardear outros yahoos, chamados de terroristas por aqueles? É a subjugação de yahoos por outra raça de yahoo, conhecida também por yankees que, como previram os houyhnhnms, evoluíram na inteligência para fins outros que a elevação da qualidade de vida de seus pares. Felizmente nosso viajante teve a fortuna de relatar apenas as atrocidades cometidas pelos europeus três séculos e meio atrás.

Melhor também preservar os houyhnhnms de saberem que a prodigiosa mente dos yahoos yankees adestraram uma raça de cães com dentes de titânio preparados para dilacerar a carne dos yahoos adversários, pois sabemos serem os cães (não se sabe como são chamados no país dos houyhnhnms) muito temidos por todos eles.

A melhor mensagem do livro de Swift na atualidade é que quanto mais conhecemos os yahoos yankees mais gostamos dos cavalos.

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