Os EUA se tornarão Gilead?
O discurso de Trump no Estado da União reforça pautas ultraconservadoras, ataca minorias e imigrantes e pode levar os EUA a um futuro sombrio.
Publicado 10/03/2025 09:38

O livro “O Conto da Aia” (The Handmaid’s Tale, no original), de Margaret Atwood ganhou alcance e se popularizou com o seriado de TV homônimo que caminha em 2025 para sua temporada final. Nele os EUA se convertem em um país fundamentalista religioso, em que as mulheres se vestem como freiras, com trajes vermelhos, e servem como aias reprodutivas e submissas para as mais variadas famílias, numa sociedade hegemonizada por homens.
O discurso do Estado da União, proferido pelo autocrata Donald Trump, na última terça, 4 de março, destrói a tradição da função do mesmo e traz pistas do que o futuro reserva para a maior nação do mundo. O Estado da União deveria funcionar como uma chamada para unir o país, superando as querelas e divisões eleitorais, consolidando o presidente eleito de todos os estadunidenses. Trump fez o oposto disso, apresentou o discurso mais desqualificado desde a criação desta ferramenta, proferindo ataques sistemáticos aos seus opositores do Partido Democrata e seu antecessor Joe Biden, aposta no aprofundamento da divisão do país e semeando os caminhos dos EUA que ele quer construir (ou destruir).
O Estado da União passou a ter a presença do presidente eleito na cerimônia que reúne as 2 casas legislativas desde Woodrow Wilson, 28º presidente dos EUA, e já vinha há 10 anos tendo seu sentido corroído e deturpado, mas nada se compara com o discurso de Trump.
Chama a atenção os ataques a países de todo mundo, desrespeito a acordos comerciais que o próprio Trump havia feito e a sequência de depoimentos e menções de cidadãos estadunidenses convidados a estarem presentes, que se colocam como vítimas do sistema e de imigrantes. Trump falou dando a impressão que uma horda de imigrantes haveria invadido o país, atacou sistematicamente a comunidade e os direitos LGBTQIA+ já consolidados, tudo isso para reforçar sua pauta moral, dando materialidade a figura de um suposto “inimigo” para sua base, garantindo que esta lhe dê mais tempo e confiança, mesmo com as medidas impopulares que toma na área econômica, que gerarão inflação, recessão e desabastecimento.
A chave do discurso é a pauta moral, os costumes, os valores conservadores, que se pautam na criminalização e deportação dos imigrantes, pintados na sua maioria como criminosos no discurso, e nos direitos das minorias. A justiça do país resiste, impingindo aqui e ali uma ou outra derrota nas propostas trumpistas, mas o presidente imperialista opera na tática de ataque incessante e inundação de pautas, para confundir a oposição e a imprensa, buscando colher alguma meia vitória que seja para transformá-la em um grande feito.
A Constituição e a independência legal nos mais variados temas dos 50 estados dos EUA dificultam o avanço da pauta ultraconservadora, os impactos econômicos e comerciais afetam a popularidade de Trump nos primeiros meses de governo. Trump joga duro, adota o unilateralismo por excelência, talvez venha a calibrar suas ações frente as reações internas, mas segue tripudiando nas relações comerciais internacionais, o que deixa seus próprios aliados numa situação desconfortável, só sobrando a estes retaliar de volta.
Tijolo por tijolo, Trump constrói outra concepção de país, outros marcos morais e sociais, realçando o que há de pior em parte da sociedade estadunidense, cindindo uma nação, podendo lá na frente, caso não haja dura e firme resistência, se tornar algo parecido com Gilead, do Conto da Aia.