“Os Miseráveis”: O povo incomoda

Diretor britânico Tom Hooper mescla drama, tragédia e epopéia para atualizar a luta revolucionária nas barricadas da Paris do Século 19. 

Enfrentar um clássico como “Os Miseráveis”, do escritor francês Victor Hugo, lançado em cinco volumes em 1832, é tarefa hercúlea, pela multiplicidade de situações, personagens e cenários. O cineasta britânico Tom Hooper (“O Discurso do Rei”) o faz a partir do musical de Alain Boubril e Claude-Michel Schönberg, estreado em 1980, em Paris, sob a direção do ator francês Robert Hossein. E escapa às armadilhas desse tipo de espetáculo, tendente normalmente ao soporífero.

Ao invés de centrar a ação na perseguição de Javert (Russel Crowe) a Valjean (Hugh Jackaman), dotando-o de inútil suspense, ele o desdobrou em várias subtramas, mesclando as ações aparentemente secundárias ao eixo central. Assim, o confronto Javert/Valjean, antes o embate maldade versus bondade, se torna a visão da extrema vigilância do Estado sob o cidadão comum. E o completa mostrando os proletários se insurgindo contra a classe dominante. “Todo mundo é igual quando eles (os poderosos) estão mortos”, canta o garoto revolucionário Gavroche (Daniel Huttlestone).

Hugo recriava a miséria e a ebulição revolucionária entre a Batalha de Waterloo (1815) e a revolta nas barricadas de Paris, em 1832. Já Hooper potencializa as greves de estudantes e trabalhadores, vitimados pelo desemprego, miséria e fome, nos países da União Européia em crise. O faz mostrando estudantes, proletários e crianças nas barricadas em Paris. “Agora quando nós lutamos, lutamos por pão”, entoam as crianças correndo pelas ruas. São os antecessores do Movimento dos Indignados.

“Barricadas reproduzem painel de Delacroix”

Estas sequências de massa com as canções entoadas em tom marcial colocam o espectador no centro da ação. Principalmente quando Hooper dispõe os revolucionários e as forças policiais no estreito espaço da Rua Saint-Denis. A câmera em sucessivos planos fechados e abertos flagra a tensão e a dimensão dos combates. As canções então compõem um mosaico de sons, cores e sombras. Funde cenários, personagens, situações e, sobretudo, a tragédia humana em sua luta pela liberdade. É poético e tétrico a um só tempo.

Há nesta composição de sequências um entranhar de emoções e temores. De Marius por perder Cosette, de Épamine por perder Marius, de Valjean para escapar a Javert, do líder estudantil revolucionário Enjolras (Aaron Tueit) para sobreviver ao combate. Estão em jogo, a um só tempo, o coletivo e o individual, que se fundem num só dilema humano. Estas multifacetadas ações reproduzem a composição de Delacroix, em seu painel “A liberdade guiando o povo” (1830), que teria influenciado Victor Hugo e perpetuado a Revolução Francesa.

Daí o filme ter fortes cores vermelha, azul, preto, marrom, tons sombrios, que refletem os estados psicológicos dos personagens. É o caso de Fantine (Anne Hathaway), que despedida da fábrica onde trabalha, acaba se prostituindo, vendendo dentes e cabelos para reaver a filha Cosette (Amanda Seyfried) em poder do casal de chantagistas Thenardier (Sacha Baron Cohen) e (Helena Bohan-Carter). Percorre becos sujos, esgotos pútridos, dorme o relento, em constante agonia, tendo ajuda tardia apenas do foragido Valjean.

Situações são brechtinianas

Os cenários também contribuem para este clima opressivo. Desde a abertura do filme, no imenso estaleiro com dezenas de condenados puxando o gigantesco navio, tendo Valjean à frente, se entra no universo dos miseráveis. E corta para os proletários nos prédios em ruínas, nas ruas estreitas, nos bares e mercados imundos. O que permite aos personagens vivenciar as situações brechtnianas de “Mahogany”. O escárnio, a farsa, o deboche com que Thenardier trata os clientes endinheirados de sua taberna e as autoridades, e o modo como o garoto Gavroche desmascara Javert, em plena barricada na rua Saint-Denis.

Hooper consegue, em várias sequências, intercalar na mesma ação diálogos, ação e emoção. Num deles, três personagens, Cosette, Marius e Éponine, estão em cena e a ação passa de um para o outro, reforçando seus temores e paixões. É brilhante. A questão é que numa epopéia da dimensão de “Os Miseráveis”, mesmo com os cuidados do diretor, certas partes do mosaico se enfraquecem. São os casos de Thenardier, de grande força no romance de Hugo, e dos próprios Valjean e Javert. Eles se tornam esmaecidos, sem força suficiente, diante dos dramaticamente fortes Éponine, Marius e Gavroche.

De qualquer forma, entende-se, assistindo a “Os Miseráveis”, o temor de Hollywood por este tipo de filme. Cheio de proletários falando em revolução. Lembra-lhe o Movimento Ocuppy, nos EUA, a Praça Tahir, no Egito, o Movimento dos indignados, na União Européia. Preferiu reforçar o papel da CIA, como cão de guarda do imperialismo estadunidense. Ainda bem que os proletários, invariavelmente, se revoltam contra ele. É melhor assim.

“Os Miseráveis”. “Les Misérables”.
Musical. Reino Unido.
2012. 157 minutos.
Roteiro: William Nicholson, Alain Boublil, Claude-Michel Schönberg, Herbert Kretzmer, baseado no romance de Vitor Hugo.
Música: Claude-Michel Schönberg.
Diretor: Tom Hooper.
Elenco: Hugh Jackman, Russel Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Edie Redmayne, Aaron Tueit, Samantha Banks.

(*) Globo de Ouro 2013: Melhor comédia/musical, atriz-coadjuvante, ator.

Oscar 2013: Melhor atriz-coadjuvante, Maquiagem e Efeitos Sonoros.

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