''Paciência revolucionária'' e o ensino superior brasileiro

Com os 8 anos do governo FHC, foram criadas todas as possibilidades políticas para a abertura indiscriminada do ensino superior pago, através de uma proliferação nunca vista de cursos de questionável qualidade por todo o país.

Nunca os empresários da área ganharam tanto, transformando educação em sinônimo de lucro. O crescimento do ensino superior pago alcançou cifras impressionantes, quanto o caminho para a soberania nacional e um projeto de desenvolvimento autônomo deveria ser dado no caminho inverso: através do investimento maciço no ensino público e gratuito.


 


Naquela esteira, a Universidade Pública foi sucateada, os professores e técnico-administrativos tiveram seus salários arrochados e a autonomia nunca foi levada adiante. Os projetos para a educação superior brasileira, ditados pelo Banco Mundial e pelo FMI, atrelados à macro-política econômica neoliberal só não foram mais danosos devido à resistência dos movimentos estudantis e de trabalhadores, além de outros movimentos sociais brasileiros.


 


Depois da política de “terra arrasada” de Fernando Henrique, a expectativa era de que o retrocesso fosse barrado. Afinal, a eleição de Lula para a presidência trazia atrás de si a defesa do ensino público, construída pelos diversos movimentos ao longo das últimas décadas. Tanto aquelas que representavam o salto sobre as propostas de Reforma Universitária represadas pela Ditadura Militar, ao impor um projeto de ensino superior legitimado pelos famigerados acordos MEC-USAID, quanto aquelas que foram construídas em contraposição aos governos pós-1964, discutidas desde a Constituinte dos anos 1980 e aperfeiçoadas até o “Plano Nacional de Educação – Uma proposta da sociedade brasileira”, apresentadas ao Congresso em 1997.


 


Na ocasião, FHC vetou os principais itens do PNE, demonstrando a total falta de compromisso com o ensino público, gratuito, estatal, de qualidade e socialmente referenciado. A opção educacional daquele governo se afastava ainda mais de uma educação que deveria procurar a elevação do nível cultural com a liquidação do analfabetismo e a disseminação do ensino laico, de boa qualidade, que assegure a todos conhecimento técnico-científico universal. Tudo isso referendado por uma reforma universitária de conteúdo democrático e progressista, garantindo a liberdade de cátedra e de pesquisa universitária, fundamentais para o desenvolvimento soberano de uma nação.


 


A submissão neoliberal daquele governo também foi na contramão do desenvolvimento da ciência e da tecnologia interligadas, estendida a todos os setores sociais que necessitam de conhecimentos mais profundos para avançar, impulsionando a construção econômico-social e cultural. Este processo só pode se dar através de um Estado que invista recursos suficientes para a formação, em larga escala, de pessoal técnico-científico de alta qualificação, criando bases sólidas de educação e investigação científica adequados à experimentação e prova, através de tecnologia de ponta e própria ligada às características do País, as quais contribuam para o seu desenvolvimento independente.


 


Em 2002, com a eleição de Lula, novas esperanças surgiram para o ensino superior. Afinal, anos de política neoliberal haviam sido derrotadas na eleição presidencial por um candidato que representava a síntese dos movimentos sócio-políticos no rumo da transformação do Brasil. Desde a nefasta política econômica que vinha privilegiando o capital financeiro, passando pelas parcas políticas sociais que não mudavam o conteúdo da dependência, até o desmonte do Estado brasileiro e da retirada dos direitos sociais dos trabalhadores, todas compondo o “saco de maldades” contra a maioria da população, aquele governo aprofundou a miséria e a desigualdade social, superlativando as dívidas externa e, em especial, a interna, deixando uma “herança maldita” que o novo governo teria que lidar.


 


Ainda necessitada de mudanças, em especial da política econômica, eis que o novo governo iniciado em 2003, no lugar de reformas que onerassem o capital, optou pela reforma da previdência e por políticas sociais compensatórias. Manteve os altos juros e o superávit primário, estratagema que favorece historicamente o setor rentista, sugando as riquezas produzidas e impedindo atividades produtivas geradoras de emprego e renda.


 


Mesmo assim, a maioria dos movimentos sociais e políticos organizados que construíram o projeto político em torno de Lula tiveram paciência para suportar os quatro anos do primeiro mandato. Auxiliaram, sobretudo, o governo a ultrapassar a “crise política” de 2005, insuflada artificialmente pela grande mídia e pela elite golpista, na sabedoria popular de que a oposição conservadora era um retrocesso maior.


 


Em 2007, quando se esperava a ampliação da coalizão nucleada pela esquerda e o rompimento com a política econômica em curso, eis que o governo reeleito amplia a sua base de sustentação nos setores fisiológicos de determinada fração das classes dominantes, sem sinalizar qualquer mudança de conteúdo diante da submissão ao capital financeiro.


 


Entre o primeiro mandato e o segundo, entretanto, aquilo que FHC não conseguiu realizar na reforma do ensino superior, e, em essência, na contramão do que fora construído historicamente pelos movimentos sociais, o governo de Lula vem levando adiante. Continuaram a ser implantados na prática projetos privatistas para o ensino superior, sobretudo através da releitura de conceitos e concepções caras aos movimentos sociais em torno da educação. Mesmo que aumentassem os recursos do Estado para a área, o conteúdo das medidas veio ao encontro dos ditames dos organismos internacionais, pois para estes e o governo a defesa histórica da autonomia didático-pedagógica, política e de gestão administrativa vem acompanhada de autonomia de financiamento, o que na prática sinaliza para a busca de recursos privados na gestão da educação superior pública, já que a noção de serviço público não vem acompanhada na mesma proporção do investimento estatal.


 


Sem romper com a linha neoliberal, na qual o ensino superior é responsável apenas para formar quadros para o mercado de trabalho, através de pesquisas com menores custos às grandes empresas, sem levar em conta um projeto de soberania nacional, nas quais educação e tecnologia façam parte de uma mesma lógica estratégica, o governo levou adiante os ditames da cartilha do Banco Mundial para a educação na América Latina denominada “O Banco Mundial e o Ensino Superior: Lições Derivadas da Experiência” (1994).


 


No início do governo Collor, quando este projeto começou a ser visualizado, muitos achavam que a privatização do ensino superior viria através do pagamento de mensalidades. Tomados de visão mecânica sobre as artimanhas do projeto neoliberal não se previa que a estratégia viria e já vinha sendo implementada desde a Ditadura Militar, através da privatização setorial dos espaços da universidade pública, impondo a lógica do mercado ao ensino superior. Na prática, se trilhava o caminho para a Reforma Universitária alicerçado na mercantilização totalizante, tanto no acesso ao Ensino através de um sucateamento crescente da educação básica e média, bem como na pesquisa, através dos convênios com empresas privadas, usando-se o nome, a estrutura e a força de trabalho disponível nas universidades públicas.


 


Nesta esteira, a precarização do trabalho dos funcionários e docentes universitários, através da terceirização dos serviços daqueles, a qual aprofunda o processo de falta de identidade com um projeto nacional de universidade e pela consolidação da lógica competitiva dos professores, inaugurada pela Gratificação de Estímulo à Docência (GED), foi comprometendo a livre-docência e praticamente extinguindo a dedicação exclusiva, o que tem repercussões desastrosas na qualidade do ensino.


 


No atual governo, após a aprovação do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES), da Lei de Inovação Tecnológica, do PROUNI, do decreto de fundações, e a elaboração de anteprojetos de lei do ensino superior, o envio, em julho de 2006, do PL 7.200 ao Congresso demonstrou que os empresários da educação estão conseguindo consolidar seu ataque frontal à educação pública e de qualidade. Em todo o texto do Projeto de Lei, tenta-se confundir o público com o privado e ampliar a desregulamentação das Instituições de Ensino Superior.


 


No Projeto são evidentes os critérios de produtividade e a possibilidade da utilização de fundações para impor o autofinanciamento das Instituições de Ensino Superior Públicas, via verbas privadas e a possibilidade da cobrança pela pós-graduação lato sensu e cursos de extensão, além da ampliação do Ensino à Distância, regulamentado como meio principal de expansão de vagas (sobretudo para o setor privado). Enquanto isso, no que se refere às particulares, não aparece a histórica reivindicação da regulamentação sobre o aumento de mensalidades ou a garantia de assistência estudantil.


 


O PL 7.200 é o coroamento de um processo de reforma universitária, pouco levando em conta os projetos construídos historicamente pela UNE, FASUBRA, ANDES, ANDIFES e PNE, sendo instituída de forma vertical, sem levar em conta a tradição democrática dos movimentos e do conjunto da sociedade.


 


Este processo recente ganhou força com o Sistema Nacional Avaliação do Ensino Superior (SINAES), através da Lei 10.861/04, quando foi instituído o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE). Este representa a continuidade do antigo sistema de avaliação, que ao invés de fazer uma real avaliação do Ensino Superior e investir onde mais se necessita, promove uma disputa por verbas públicas entre universidades públicas e privadas, ao colocar o Estado como regulador das instituições públicas, seguindo a lógica do “controle de qualidade” e de desresponsabilização deste na manutenção do direito à educação, pois possibilita o ranqueamento que pode ser vinculado ao financiamento.


 


Depois veio a instituição da Lei de Inovação Tecnológica (aprovada em dez. 2004, Lei 10.973, enviada pelo MC&T), a qual possibilita o direcionamento das pesquisas produzidas nas universidades públicas para os interesses das grandes empresas, bem como a utilização de laboratórios e equipamentos das universidades públicas pelas mesmas, vindo ao encontro de outro projeto mais amplo para o Estado brasileiro, através das parcerias público-privadas. A LIT fortalece o “professor empreendedor”, possibilitando que as universidades públicas busquem fontes de financiamento próprias, premiando os docentes com maiores índices de produtividade científica (com remuneração extra), promovendo a competição entre os professores por bolsas financiadas pela iniciativa privada e estabelecendo cláusulas de sigilo que impedem que o conhecimento produzido pela universidade sejam estudados em sala de aula ou divulgados publicamente.


 


Na seqüência veio o PROUNI, através da Lei 11.096, de 13/01/2005. Enquanto que o movimento social sempre lutou pela ampliação das vagas públicas, com a criação de cursos noturnos, dando conta da capacidade ociosa das Universidades Federais, esta lei vem favorecendo as universidades pagas (inclusive as que são consideradas filantrópicas, sendo 90% do total), através da compra de vagas em universidades privadas pelo Governo Federal, transferindo ainda mais recursos públicos para este setor do ensino, notório por sua característica de pouco investimento em pesquisa e extensão e pela falta de assistência estudantil e de qualidade de ensino na maioria de suas instituições, agora aliviadas com um menor número de vagas ociosas. Por outro lado, a isenção de impostos para as Universidades contempladas mostra que os valores que o governo deixa de arrecadar poderia dobrar a oferta de vagas nas IES públicas. Neste sentido, os contemplados por estas medidas, será que não teriam, se pudessem, preferido esta última opção.


 


Não bastassem as medidas pontuais, veio o projeto da chamada Universidade Nova, a qual poderá transformar a educação superior numa verdadeira escola técnica, ou tecnológica. Formada por ciclos básicos, em que os estudantes terão sua formação complementada por um ano da parte específica de cada curso, em três anos um estudante sairia com um título de graduado tecnológico. Nesta mesma lógica, o ensino à distância marcará boa parte da formação, podendo o mestrado e o doutorado também ter suas variáveis tecnicistas, pois para se tornar um mestre ou doutor tecnológico poderão não ser mais exigidos uma dissertação e uma tese, respectivamente. Na mesma natureza das licenciaturas curtas, instituídas pelo governo civil-militar pós-1964, visualiza-se uma menor formação humanista e crítica, através da formação de mão-de-obra adaptada às “necessidades” do mercado.


 


Por fim, foi estabelecido o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), o qual vem propondo uma nova função das universidades públicas federais. Acenando com verbas que não ultrapassam 10% a 20% do que atualmente é destinado às IFES, pretende induzir os órgãos superiores das instituições a se comprometerem com expansões da ordem de 100%, no número de ingressantes, e de 200%, no das matrículas, ao buscar elevar, num prazo de 5 anos, a taxa média de conclusão dos cursos de graduação presenciais para 90% e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor para 18.


 


Com esta medida, será permitida quase a duplicação de ingressos, sem contratação adicional de docentes, somada com o aumento da taxa de conclusão média, dos atuais 60% para 90%, o que pode levar à triplicação dos concluintes sem investimentos adicionais, desde que esta reestruturação se valha de um ciclo básico polivalente, no estilo “Universidade Nova”.


 


Traduz-se daqui que estas medidas reforcem a lógica da quantidade voltada para o mercado contra a busca da qualidade do ensino superior. É por isso, que soma-se a este intento a Portaria Interministerial nº 22 MEC/MP, de 30 de abril de 2007, que institui o “banco de professores-equivalentes”, como instrumento de gestão, na qual a administração deste “banco”, por parte das universidades federais, pode realizar concursos para professor de 3º grau, condicionado à existência de cargo vago no seu quadro, e contratar professor substituto, dentro das hipóteses previstas por lei.


 


O “banco” foi construído dando-se a cada docente, em exercício em 31/12/06, um peso diferenciado, segundo sua condição de trabalho. Assim, um docente em dedicação exclusiva vale um pouco mais do que 3 professores em regime de 20h; 4 docentes em 40h equivalem a 5 professores substitutos, todos também em regime de 40h ou a 10 professores substitutos em regime de 20h.


 


Como resultado final, é provável, pela lógica da discricionariedade da administração, que os reitores, os quais formalmente não abdicaram da autonomia de suas universidades, mas o fizeram na prática, abram mão dos contratos em Dedicação Exclusiva, da pós-graduação e da pesquisa mais dispendiosa, contratando docentes aulistas (como os com contrato de 20 horas ou substitutos), medida que quebra o tripé constitucional e garantido pela LDB para o docente de ensino superior, baseado em atividades de ensino, pesquisa e extensão. Estes novos contratados tenderão a ficar de fora de atividades de pesquisa ou administração, contando com um número infinitamente superior de educandos em sala de aula. Isto é, aqui se consolida a lógica privada para o ensino superior, através de uma questionável e precária “expansão das universidades federais”, já limitada por outras medidas, sendo que que o PAC limitou, por 10 anos, a expansão das folhas de pagamento a apenas 1,5% ao ano, o que corresponde aproximadamente ao crescimento vegetativo da despesa com pessoal.


 


Aqui, o que é mais grave, procurando evitar mobilizações diante dos possíveis congelamentos de salários dos servidores públicos federais até 2016, conforme estabelece o PAC, soma-se a lei da regulamentação da greve para o setor público, na verdade um resgate do entulho autoritário que impõe restrições a este direito fundamental dos trabalhadores.


 


Não faltando mais nada, justamente na conjuntura da greve dos servidores técnico-administrativos, o decreto mais recente estabeleceu a criação das chamadas Fundações Estatais de Direito Privado, enquadrando os hospitais-escola das Universidades Federais nesta categoria, cujos funcionários poderão ser contratados pela CLT, tendo a estabilidade do emprego flexibilizada através de metas de produtividade e qualidade do serviço. Além disso, estas fundações podem ter autonomia gerencial, orçamentária e financeira, patrimônio próprio e receitas próprias, submetida à gestão dos órgãos de direção ou gerência, cujos recursos não aparecem no Orçamento da União, observando o sistema de contabilidade privado. Conforme temiam os servidores, a velha ameaça de privatização dos hospitais universitários, propostos na farsa do governo anterior se concretiza, tragicamente, durante o governo Lula.


 


Diante deste quadro, não é por nada, que os movimentos sociais e políticos, que historicamente, apostaram num Brasil que reduzisse suas desigualdades sociais fortalecesse o Estado como fator de desenvolvimento autônomo e soberano e rompesse com o ciclo de domínio do capital financeiro, cada vez mais entrem em rota de colisão com o atual governo e com seus projetos de submissão aos interesses maiores das classes dominantes do País. Afinal, não esperavam que a Reforma Administrativa sob a ótica neoliberal do Estado, defendida há anos por Bresser Pereira e pela Emenda Constitucional 19 do governo FHC, fosse levada adiante por Paulo Bernardo, ministro do Planejamento do Governo Lula e do Partido dos Trabalhadores.


 


Muitos dirão que as críticas estão centradas no corporativismo, mas não é a toa que a “paciência revolucionária” daqueles movimentos pode e deve estar chegando ao fim.

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