“Para o outro lado”, ritual da reparação
Reconstrução do outro em meio à reverência ao ente querido e a purgação da culpa é o tema deste filme do cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa.
Publicado 17/12/2015 17:40
Poderia ser uma simples história de uma jovem professora de piano, solitária, que se vê de repente às voltas com o companheiro que a abandonou. E, ao invés de confrontá-lo, parte com ele numa longa viagem de redescoberta, que envolve culto aos mortos e à natureza, em reverência ao xintoísmo, religião cultuada por cerca de 120 milhões de japoneses. O que permite ao cineasta Kiyoshi Kurosawa (1955) transformar este “Para o outro Lado” num olhar sobre a reconstrução da imagem do outro.
Desta forma ele, diretor/roteirista, desenvolve sua narrativa, dando-lhe clima etéreo. A luz de Akiko Ashizawa, diretor de fotografia, muito contribui para isto, com os personagens indo por estreitas ruas, cachoeiras, florestas e campo. Ou se relacionando em ambientes que lembram os de “A Partida”, de Masahiro Motoki, (2008), sobre rituais funerários, ao mostrar o pouco conhecido interior do Japão.
Este modo de Kurosawa envolver os personagens na ação e desdobrar o tema central em quatro tramas: distribuição de jornal, trabalho em restaurante, aulas de astrofísica, contenção do suicida – faz o encanto do filme. Tudo nele é suave, sob controle, cheio de sutilezas e sentido. Misuki (Eri Fukatsu) é delicada, aparentemente submissa, interessada em conviver com o companheiro Yusuke (Tadanobu Asano), que reaparece subitamente depois de três anos, sem explicações.
Misuki descobre a si e a Yusuke
A relação deles vai num contínuo nas pequenas cidades por onde passam. Em cada uma delas, ela descobre um traço desconhecido da personalidade de Yusuke. Entre eles sua capacidade de fazer amizades e mostrar suas submersas habilidades. Como o técnico em computador que ajuda o idoso viúvo a administrar sua distribuidora de jornais, experiente cozinheiro num requintado restaurante, professor de astrofísica para uma heterogênea e pobre comunidade rural.
Através dele, Misuki passa a entender as agruras do outro. O idoso viúvo, ainda que ativo, é corroído pela culpa, devido ao modo de tratar a falecida companheira. E o expõe a Misuki, que não se surpreende quando ele pune a si mesmo. Nem os sutis dilemas de Yusuke não lhe escapam. Inclusive a recomposição dele com os donos do restaurante, que lhe permitem mostrar suas habilidades culinárias. Assim, ambos anseios são atendidos, os dele e os dela, segundo os preceitos xintoístas da reparação.
Mas ela também tem seus instantes de hesitação, ao se mostrar passiva, como a professora que assiste aos erros da aluna sem interferir, nem reage à intervenção da mãe, que tenta fazê-lo. Compreende-se, assim, que ela vive os dilemas da perda de Yusuke e os seus ao mesmo tempo. E se culpa por não se opor à mãe da aluna. Só concilia.
Yusuke ensina a astrofísica ao povo
O interessante nessas tramas é a maneira como a narrativa e os flahsbacks se mesclam, para chamar atenção da situação vivida pelos personagens. Em dada sequência, Mizuki desperta saindo à procura de Yusuke e o encontra em casa, noutra ela age como se ele não tivesse voltado. Seu subconsciente leva-a a imaginar situações, numa busca de entendimento da perda do companheiro. E o idealiza em projeções para, enfim, compreendê-lo e dele se distanciar, aceitando o inevitável.
A esta altura, Yusuke é o jovem simpático, ídolo de idosos, jovens e crianças de um povoado. Ali despertou-os para as teorias da Relatividade (1907/1915), de Albert Einstein (1879/1955), e do Big-Bang, sobre a expansão do universo, consumada por Edwin Hubble, em 1930, mas hoje questionada. Isto lhe permitiu situá-los como integrantes do cosmo, não dependentes do Etéreo, enquanto ativos seres sociais.
Mesmo na sequência que envolve a questão religiosa, Kurosawa trata a relação de Yusuke com o atormentado amigo morto com distanciamento. Sua câmera permanece à distância, imóvel. E o espectador pode se confundir, pois nada é explicitado. Em dado instante o amigo morto quer partir, mas sua companheira e Yusuke tentam impedi-lo. Entretanto, ele insiste por ter suicidado, uma vez que esta iniciativa é ritual xintoísta.
Como recompensa Yusuke é idealizado
As projeções de Mizuki acabam por o metamorfosear Yusuke no ser dotado de capacidades excepcionais. Distante do ser humano cheio de qualidades e imperfeições. É mais uma idealização dela, para reparar os maus feitos dele. Forma de reverter, também, sua passividade frente à atitude da mãe da aluna. Numa bem construída sequência, Kurosawa coloca-a na sala, a garota ao piano, e se dá o esperado: a aluna executa ao piano a sonata a seu modo, não ao da mãe, libertando Mizuki.
Tal complexidade se enfeixa numa personagem que de passiva se torna ativa, interveniente, sem cair no estereótipo da mulher-vítima. Pode-se questionar a maneira como Kurosawa a estruturou, idealizando o amado, porém isto se deve ao ritual xintoísta, de realçar as qualidades do morto. Ela, enfim, pôde separar-se dele, reconfortada. Na vida, porém, inexiste esta chance.
Para o outro lado (Koshebe no tabi). Drama. França/Japão. 2015, 129 minutos. Trilha sonora: Naoko Eto/Yoshihide Otomo. Montagem? Tsuyoshi Imai. Fotografia? Akiko Ashizawa. Roteiro/direção: Kiyoshi Kurosawa. Baseado no romance homônimo de Kazumi Yumoto. Elenco: Eri Fukatsu, Tadanobu Asano, Yü Aoi, Hideyuki Okamoto.