Para onde vai o etanol brasileiro?

Na história dos recursos energéticos, a atual crise do petróleo se assemelha à crise do óleo de baleia, principal combustível da primeira metade do século XIX — as baleias eram caçadas no Atlântico Norte, e quase foram extintas, para iluminar a Costa Lest

A assinatura do memorando de entendimento entre o Brasil e os Estados Unidos na área do etanol é um desses acontecimentos que geram faíscas, com potencial para se transformar em incêndio. Há muita coisa em questão. Para começar, na mente do brasileiro a produção de cana-de-açúcar sempre esteve associada a dois estereótipos. Primeiro, ao senhor-de-engenho, personagem que — da época das capitanias hereditárias às gravuras de Jean Baptiste Debret ou às páginas de José Lins do Rego — extraía um poder político quase ilimitado da riqueza dos canaviais. Segundo, em tempos mais recentes, ao coronel usineiro — figura associada ao PFL e suas ascendências, aos escândalos de corrupção, à promiscuidade com o Estado e ao primado da força das armas sobre o bom senso. O ponto aqui é: a realidade atual está distante desses estereótipos? Dá para avalizar a investida no etanol sem a forte presença do Estado no setor? Vejamos.


 


O fenômeno é totalmente diferente da bolha gerada pelo Proálcool nos anos 70 e 80. Com o setor regulamentado, o Estado determinava quanto plantar, quando e por quanto vender. Desde a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), em 1990, a ação racional do Estado foi substituída pela lei que rege o setor privado — ou seja, o mais forte manda em tudo. Os usineiros se agruparam em companhias agrícolas, dividem máquinas, distribuição e comercialização. O emprego está desaparecendo: há tratores monitorados por satélite, máquinas de adubagem com controle eletrônico e colheitadeiras de precisão. Cerca de 25% das propriedades mecanizaram a colheita — em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, sede de quase 30% da produção canavieira do país, foram 50%.


 


Donatários de sesmarias


 


Do passado, ficou a tradição familiar. No comando das 80 maiores entre as mais de 300 usinas do país, estão sobrenomes de elite. O grupo Tércio Wanderley — que controla, em Alagoas, a Coruripe, maior usina do Nordeste — tem hoje três unidades em Minas Gerais. Entre os grupos que mais cresceram está o J. Pessoa, de José Pessoa de Queiroz Bisneto, descendente de usineiros de Pernambuco. Os Ometto, clã mais tradicional do interior paulista, comandam as duas maiores usinas: a Da Barra, cujo dono é Rubens Ometto, do grupo Cosan, e a São Martinho, administrada por Homero Corrêa de Arruda Filho.


 


Os Junqueira estão por trás da comercializadora Crystalsev, parceira da norte-americana Cargill em portos, usinas no Brasil e fábricas no exterior. Trata-se de uma das maiores famílias rurais do mundo, com quase 100 mil descendentes do casamento de Elena Maria e João Francisco Junqueira, que, no século XVIII, eram donatários de sesmarias em Minas Gerais. Os Balbo criaram a Native, marca de açúcar orgânico de Sertãozinho, interior de São Paulo, exportada para mais de 30 países. Os Zillo, do grupo Zillo Lorenzetti, detêm três usinas e cultivam cana em 15 municípios no centro-oeste do Estado de São Paulo. Do interior da França, onde mora, o líder familiar José Luiz — um empresário que nos anos 80 presidiu a Copersucar — palpita nos negócios do grupo.


 


Lá fora, ele possivelmente tem uma visão mais panorâmica do potencial de lucro para os produtores do etanol brasileiro. Com o preço do barril de petróleo em alta, o mundo se vê obrigado a achar um combustível mais barato — e a adição do álcool é uma opção natural. Para as 30 nações industrializadas, entre as 141 que aderiram aos protocolos de Kyoto, pesa ainda a responsabilidade de reduzir as emissões de gás — e aí, novamente, o etanol é uma alternativa. Até os Estados Unidos começaram a usar o álcool de milho e de outros cereais misturado à gasolina. A produção norte-americana passou de 5 bilhões de litros em 1994 para 15 bilhões de litros no ano passado.


 


Ebulição no mundo da cana


 


É preciso considerar que o cumprimento do anunciado no memorando assinado com os Estados Unidos exigirá do Brasil a produção de muito mais álcool. E isso significa que novas usinas terão de ser instaladas e as atuais, ampliadas — na safra 2006, o país produziu cerca de 17 bilhões de litros. O resultado é uma verdadeira ebulição no mundo da cana. Um levantamento da consultoria MB Associados mostra que, nos próximos dez anos, as exportações de álcool podem alcançar 6,9 bilhões de litros — quase o triplo do total embarcado no ano passado. As dimensões dessa transformação já são superlativas. De 2000 para cá, as exportações brasileiras cresceram de 258 milhões de litros de álcool para 2,4 bilhões, e as receitas, de 33 milhões de dólares para quase meio bilhão por ano.


 


Esses números ainda devem crescer. Para atender à crescente demanda externa, os canaviais começam a avançar sobre outras culturas. A previsão é que a área de cana plantada aumente 50% até 2015. O impacto na cadeia de produção — da compra de máquinas, passando pela colheita, aos embarques no porto — será enorme. O aumento do consumo de álcool no mundo, que já está transformando o setor canavieiro no mais promissor negócio da agroindústria brasileira, certamente trará mais problemas para as complexas relações sociais no campo — os produtores de cana aprimoram o conchavo político e muitos continuam praticando a lei da selva nos canaviais espalhados pelo país.


 


Crítica dos japoneses ao etanol


 


Outro ponto: quanto mais países adotarem o etanol, melhor para o Brasil? Em visita ao Japão, uma das fronteiras promissoras para o álcool brasileiro, a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um esforço para rebater as críticas das companhias locais de petróleo — a Nippon Oil chegou a exibir estudos afirmando haver desvantagens no uso do álcool brasileiro. Outra questão: há estudos que apontam o inexorável controle do setor por empresas estrangeiras caso o etanol se confirme como sucesso mundial. A norte-americana Cargill já comprou a Açucareira Corona, dona de duas usinas paulistas. A alemã Südzucker, a maior produtora de açúcar do mundo, passou os últimos dois anos rondando as maiores usinas brasileiras. Hoje, há 40 grupos controlando 60% deste mercado. A estimativa é de que em 20 anos essa fatia vai estar nas mãos de cinco ou seis grandes grupos.


 


O cenário mundial tem como tendência a confirmação do sucesso do etanol. A primeira explicação é que há uma conjunção de elementos geopolíticos que afetam a oferta de petróleo. Existem potenciais problemas, para os países de maior consumo, sem visibilidade de solução no curto prazo, nas principais áreas produtoras — como o Iraque, onde a produção vem caindo desde a agressão dos Estados Unidos, o Irã, a Argélia, a Arábia Saudita e até o Kuwait. O colapso da empresa petrolífera Yukos na Rússia e a postura altiva da Venezuela também contribuem para o cenário pró-etanol. Tudo isso vem limitando o aumento da produção de petróleo. A segunda explicação está relacionada ao atual desequilíbrio entre a oferta e a demanda mundial de petróleo.



 


O mundo nunca consumiu tanto petróleo — e, em parte por isso, nunca estivemos como hoje à beira de tamanha crise energética. O consumo global está prestes a empatar com a oferta, no patamar de 86 milhões de barris por dia. Uma frase, de um recente anúncio publicitário do grupo norte-americano Chevron Texaco, ilustra o dramático aumento do consumo de petróleo no planeta nos últimos anos: foram necessários 125 anos para que o mundo consumisse o primeiro trilhão de barris de petróleo, mas bastarão 30 anos para consumir o segundo. Prever quando essa escalada vai levar ao esgotamento dos poços é um exercício de futurologia — a Agência Internacional de Energia (AIE), por exemplo, diz que a produção mundial vai atingir o pico em algum ponto ''entre 2013 e 2037''.


 


Os campos maduros da Petrobras


 


O Brasil, com reservas estimadas em 11 bilhões de barris e praticamente no caminho de se tornar um exportador de petróleo, é um território muito cobiçado — fato que exige dos brasileiros muita atenção e preparo. A recomendação é especialmente válida para quem tem no petróleo seu principal negócio, como a Petrobras, a maior empresa do país. Das 276 concessões da estatal, 199 — 72% — estão na maturidade, eufemismo para se referir aos campos em fase de declínio da produção. Essas áreas representam 40% das reservas provadas da Petrobras e cerca de 75% do óleo e do gás produzidos no Brasil. Na bacia de Campos, no Rio de Janeiro, 30 das 32 concessões já entraram na fase de maturidade.


 


Na tentativa de adiar o declínio dos campos maduros, a Petrobras lançou em 2005 um programa de revitalização que combina o uso de novas tecnologias com melhorias no gerenciamento das operações. Com investimento de 2,4 bilhões de dólares até 2011, a meta é recuperar 800 milhões de barris de petróleo, o correspondente à descoberta de um campo gigante. Os primeiros resultados começam a aparecer. Em Albacora, na bacia de Campos, por exemplo, que hoje produz 116 mil barris por dia, a empresa inaugurou um sistema inédito de injeção submarina de água no reservatório que deverá resultar num ganho de 45 mil barris diários em 2010. Além de tentar adiar o inevitável, a Petrobras começou a atuar na frente das energias renováveis. Uma coisa é certa: é preciso se preparar para viver num mundo sem petróleo.


 


A idade da pedra e a idade do petróleo


 


Catastrofismo ou não, o fato é que algumas das principais empresas petrolíferas do mundo — entre elas a Petrobras — estão mudando seu enfoque e tornaram públicas suas estratégias de investir no desenvolvimento de energéticos alternativos. Nessa corrida, o Brasil sai na frente porque os dois choques do petróleo da década de 70 forçaram o país a aumentar o uso de fontes renováveis em substituição ao combustível fóssil, como o álcool. Essa medida levou à queda da participação do petróleo e de seus derivados na matriz de 51% para 38%, entre 1978 e 1984. Mesmo assim, o petróleo não perdeu sua hegemonia ao longo de todo o período de 1970 até agora, com uma participação nunca inferior a 37% na matriz energética.


 


Apesar dessa dependência de petróleo, o Brasil foi o único país do mundo a conseguir uma penetração efetiva de biomassa em sua matriz. A cana e seus derivados chegaram a representar 14,4% de toda a energia bruta ofertada no país, em 1994. Em relação ao transporte rodoviário, o álcool chegou a 23% de todo o combustível consumido no setor em 1989 e, em 2002, representava ainda 13%. O lançamento em 2003 dos veículos flex-fuel voltou a estimular a venda de álcool. A busca por diversificação na matriz energética, tanto no Brasil quanto no mundo, corrobora as palavras do sheik Zaki Yamani, ministro do Petróleo da Arábia Saudita durante o primeiro e o segundo choques do petróleo, de que ''a idade da pedra não acabou por falta de pedra, então a idade do petróleo não acabará por falta de petróleo''.


 


Voltarei ao papel histórico da Petrobras na próxima coluna.


 


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