“Pássaros de Verão”: Ganância demais

Nos anos 70, dois clãs indígenas colombianos entraram em confronto pelo controle do tráfico de drogas, tendo estadunidenses como seus parceiros

De qualquer modo há neste “Pássaros de Verão” uma série de inversões dramatúrgicas e narrativas que põem o espectador diante do que exige um tema de tal magnitude. A dupla de diretores colombianos Cristina Gallego e Ciro Guerra não se prendeu apenas à visão do indígena vítima dos predadores da floresta. Se fixaram, partir do argumento de Gallego e o roteiro de Malia Camila Arial e Jacques Toulemonde, noutro universo. O dos anos 70, quando os clãs indígenas Wayu e Aliyuna conviviam com uma nova realidade. E tiveram de buscar outra forma de sustentação cotidiana.

É através desta mutação que a dupla Gallego/Guerra, centrada nas estruturações de seus roteiristas, constrói um universo no qual as lideranças dos Wayus e Aliyunas atentam para as potencialidades econômicas da floresta. Inclusive da planta “cannabis sativa”, a maconha, conhecida por eles, porém ignorada, como meio de criação de inimaginável “riqueza”. A forma usada pela dupla para introduzir esta visão é quase sub-reptícia. A abertura da história tende ao idílico, romântico, pois a sequência segue o ritual do pedido de casamento da wayus Zaida (Natalia Reyes) pelo Aliyuna Rapayet (José Acosta) e o tema central só chega na segunda parte.

O que nela ocorre nestes instantes, por mais gratificante que seja para os noivos e suas famílias, não é tão fortalecedor em si. O mais importante está na relação que se firma entre os dois clãs, pois amplia a liderança da matriarca Úrsula (Carmiña Martinez), líder dos wayus. É com ela que tudo é tratado e encaminhado, inclusive junto a Pelegrino, tio de Rapayet. Ela não deixa de firmar sua filosofia sobre os anseios do jovem Rapayet, numa voz tão calma quanto pôde emitir. “ O sonho é a prova da alma”. Naquele instante, ela se atém mais ao dote do que aos preceitos.

Choques entre clãs elevam a tensão

Para chamar atenção do espectador, a dupla Gallego/Guerra, divide sua narrativa em cinco capítulos, como se tratasse de um romance imagético. Com a câmera sempre aberta, ela a desloca pela vasta área a dar na montanha, na floresta e no rio. São grandes planos a matizar a amplitude das terras e o volume das águas sob o controle milenar do clã wayus. Nas primeiras sequências tudo transcorre como se a história fosse familiar e girasse em torno de Zeida e Rapayet. E Úrsula logo o alerta para a urgência de ele se adaptar aos wayus, pois, seria um deles.

Desde as primeiras sequências deste “Pássaros de Verão”, o espectador entende que ele será o elo do clã com os Aliyunas. E como acontece na maioria dos filmes de hoje inexiste preparação para o que vem a seguir, pois o espectador já antevê o desenvolvimento da história. Contudo, o que ocorre no encontro de Rapayet com seu primo Mongo, mais articulado e ebulitivo do que ele, desmonta esta construção. E o que parecia um drama romântico, antevendo choques entre os dois clãs se transforma num filme político de alta voltagem eivado de denúncias.

Não sem razão, pois estava em curso o acirramento do confronto político-ideológico entre as superpotências da época URSS (União Soviética – 1917/1985) e os Estados Unidos (EUA). E o então presidente dos EUA (1961/1963), John Fitzgerald Kennedy (1917/1963), criou o Peace Corps (Corpo da Paz), organização supostamente humanitária para atuar em pontos estratégicos dos países do Terceiro Mundo, principalmente na América Latina. Formada por jovens direitistas radicais, os chamados voluntários eram treinados para difundir o anticomunismo em regiões onde os moradores eram pobres, despolitizados e analfabetos.

Voluntários dos EUA viraram traficantes

Em estruturação a desmentir a falsa propaganda imperialista, a dupla Gallego/Guerra e seus roteiristas Arial, Toulemonde e a própria Gallego denunciam a partir daí o que realmente eles faziam. Seus espiões frequentavam as aldeias não para executar o plano de ajuda humanitária como previsto. E a infiltração, como o espectador logo entende, não tinha fins humanitários, era para controlar os pontos em que a maconha era cultivada, tratada e empacotada para a venda nos próprios EUA. E eles sabiam como chegar a tão rico e crescente mercado para a canabis sativa.

É na terceira parte deste “Pássaros de Verão”que Rapayet e Mongo estruturam as trilhas de transporte da maconha nas viagens em lombos de burro pelas montanhas e trilhas na floresta. E se aliam aos voluntários do Peace Corps para atender a ambição deles de abastecer o mercado da maconha nos EUA e ganhar milhões e milhões de dólares. A esta altura, os primos dos clãs Wayu e Aliyunas tinham já expandido seus negócios e mantinham sob controle o monopólio montado por eles. E a própria Úrsula, como líder do clã Wayu viu seu poder se ampliar. Agora era protegê-lo.

É ainda nesta terceira parte que o filme se torna mais complexo. Úrsula controlava não apenas seu clã, tinha de administrar um negócio perigoso e nem por isto menos lucrativo. E, além disso, o confronto aberto entre Rapayet e Mongo tornava-se cada vez mais perigoso. Enquanto o primeiro se entregava a construção de belas mansões e se tornara o líder do crescente negócio com a canabis sativa, o segundo mostrava desmedida ganância. Suas roupas eram extravagantes, transitava em luxuosas caminhonetes e entrava em constantes farras. E se impunha ao modo dos “poderosos chefões” com sua arma fumegante e o poder do dinheiro farto.

Dupla Guerra/Galego usa estética chinesa

É na quarta parte da narrativa que a dupla Guerra/Galego transforma este “Pássaros de Verão” num filme digno de menção. Sua estruturação dramatúrgica foge aos clichês dos filmes cujo tema é o tráfico de drogas e seus chefões. Passa ao largo da primorosa estruturação estética em claro-escuro e a composição dos personagens feita por Francis Ford Coppola (1939) na trilogia “O Poderoso Chefão (1972/1974/1990)”. Nem Rapayet espelha Don Corleone (Marlon Brando, 1925/2004), que age como respeitável empresário e elimina seus inimigos. Não há como citar ao menos a construção dramatúrgica operística das sequências violentas.

Para o supremo elogio do cinéfilo e do espectador em busca de apenas um bom filme, a dupla Guerra/Galego dá um tratamento sofisticado às cenas de violência. São menos ritualísticas e mais contidas, nem por isto são menos impactantes. Em vez de Hollywood, buscou a estética e a contida encenação do mestre chinês Wong Kar-Wai (1958), de “O Grande Mestre (2013).Os confrontos são frios e a vingança explícita é encaminhada com frases e disparos certeiros. Isto se dá nas sequências finais, quando tudo que foi construído começa a ruir e os poderosos ficam sem ação. É a famosa parábola do rei cujo poder absoluto o cegou.

Úrsula acumulou demasiado poder

Como já antevisto, Úrsula e Rapayet acumulam poder demais e isto desequilibra sua relação com os demais clãs. E principalmente com alguns ambiciosos parentes, agora também poderosos, pois o tráfico se expandiu na região de Guajira, na Colômbia tomada pela floresta virgem e a erva. É o desfecho que desconstrói as construções neste tipo de drama político, mescla de denúncia, crime organizado e a eterna disputa pelo poder e a desmensurada ganância. Não deixa de ser o espelho da sociedade capitalista, onde acumular é símbolo de sucesso às custas dos deserdados.

Pássaros de Verão. (Pájaros de Verano) Drama político. Colômbia, Dinamarca, México, França. 2019. 125 minutos. Música: Leo Itei Blum,. Montagem: Miguel Schverd Finger. Fotografia: David Gallego. Argumento: Cristina Gallego. Roteiro: Malia Camila Arial e Jacques Toulemonde. Direção: Cristina Gallego/Ciro Guerra. Elenco: Carmina Martinez, José Acosta, Natalia Reyes, Jhon Narváez, José Vicente Cote, Juan Batista Martinez.


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