Populismo: isso existe?

O termo populismo é mais uma dessas palavras repetidas à exaustão pelos neoliberais. Mas, afinal, o que isso quer dizer? A questão se resume ao conceito de democracia, um problema que confunde até gente de esquerda, como o senador Aloizio Mercadante (PT-S

No Brasil dos últimos meses, reduziram-se as bravatas, o discurso fácil do oportunismo político, o denuncismo estéril. Até parece que todo mundo ficou mais responsável, mais conseqüente. E absurdos deixaram de ser levados a sério. Invenções estapafúrdias, como aquela avalanche de CPIs, deixaram de ser testadas. A impressão que se tem é a de que a eficiência do debate político aumentou. E uma energia preciosa deixou de ser gasta em bate-bocas, bobagens e longos passeios por becos sem saída para ser aplicada no que importa: desenvolver o país, sanar suas mazelas, gerar mais qualidade de vida para todos. Essa é a fotografia do debate político visto em sua superfície. Mas basta levantar um pouco o tapete para ver o que há em suas profundezas.


 


Só os ingênuos poderiam acreditar nesse amadurecimento do quadro político brasileiro. Estamos, na verdade, passando por uma fase de rearticulação de forças. A disparidade de propostas disputando a hegemonia do país é um indício seguro de mais embates de grandes proporções pela frente. Leques de opções com pólos antagônicos, que mal se falam e quando falam não se entendem, são coisas típicas de um país como o nosso. É falsa a tese que vire e mexe aparece por aí de uma suposta coincidência de intenções entre tucanos e petistas gerando um pólo magnético central que atrai para a sua órbita todos os outros partidos importantes. Estamos longe ainda de inaugurar no país uma era de consensos mínimos. (Aliás, a capacidade da “grande imprensa” de atrapalhar a vida e o desenvolvimento do país parece infinita.)


 


Palavra tão falada e nunca explicada


 


O ponto central deste debate se resume a algumas questões. Qual é o tamanho ideal que o Estado brasileiro deve ter? Quantas pessoas devem trabalhar para o setor público? Quanto o Estado deve arrecadar de impostos? Os “comentaristas” da “grande imprensa” do país tratam destes temas como se o mundo estivesse caminhando inexoravelmente para uma época em que os Estados são cada vez menores, centrados na administração da ciranda financeira. Até inventaram um nome para o novo paradigma: “Estado mínimo”. O papel e o microfone aceitam qualquer bobagem. A realidade, como sempre, é muito mais complexa do que idéias artificiais. Uma das maneiras de medir a eficiência do Estado é olhar a sua capacidade de transferir renda. Mas, para os liberais de hoje em dia — os neoliberais, um grupo meio esquizofrênico, para o qual o Diabo sempre aparece na forma de Estado —, isso não passa de “populismo”.


 


Afinal, o que quer dizer essa palavra tão falada e nunca explicada? Simpatia pelo povo, explica o dicionário Houaiss. Pode ser também doutrina e prática políticas que pregam a defesa dos interesses das camadas não privilegiadas da população, mas que se limitam a ações de cunho paternalista. Obviamente, essa segunda definição é a preferida dos neoliberais. Para eles, é isso que está ocorrendo na América Latina e pode chegar ao Brasil. A pregação neoliberal é tão fervorosa que parece ter contagiado até gente com inegável histórico de esquerda. Pegue o exemplo de um artigo do senador Aloizio Mercadante (PT-SP) publicado no jornal Folha de S. Paulo do dia 12 de janeiro de 2007. “(Os regimes populistas da América Latina), apesar de legitimamente eleitos, têm introduzido elementos nocivos à normalidade democrática”, disse ele.


 


A quais “fundamentos” Mercadante se refere?


 


Mercadante chega ao exagero de advertir que “na justificada luta pelos direitos sociais e econômicos da população excluída, certos direitos e liberdades civis podem ser sacrificados”. “Ademais, ao adotarem políticas econômicas que não têm sustentabilidade, esses regimes correm o risco de exacerbar a insatisfação que lhes deu origem. Assim, as democracias latino-americanas vêm sendo fragilizadas, de um lado, por políticas demasiadamente ortodoxas que não resultaram na expansão dos direitos sociais e econômicos da população, e, de outro, por regimes populistas que, na tentativa de assegurar direitos sociais aos excluídos, solapam, com o sacrifício de princípios essenciais à cidadania e políticas sem sustentabilidade, os fundamentos da democracia”, escreveu o senador, como se fosse preciso apresentar obrigatoriamente as idéias sempre no estilo ''por um lado isto, por outro, aquilo''.


 


É preciso esclarecer algumas coisas. No mundo das coisas reais, as políticas populares adotadas pelos governos progressistas da América Latina — sobretudo o de Hugo Chávez, na Venezuela — solapam os “fundamentos” da democracia liberal. E aprofundam os da democracia popular. A quais “fundamentos” Mercadante se refere? Quais são as idéias de uns e de outros? Vejamos: quem, por exemplo, são os maiores pensadores do século 20, ou quem foram os maiores do milênio? Quem moldou o mundo — ou, melhor dizendo, o moldou para melhor? A maioria das listas desse tipo apresenta filósofos, economistas e líderes políticos progressistas. Se a nossa preocupação é apresentar idéias que sobreviveram e prosperaram, para que incluir a democracia liberal e sua descendência?


 


Pregação fundamentalista neoliberal


 


O neoliberalismo, que freqüentemente dá um ar de modernidade à maldade insana de regimes políticos direitistas, vai conquistando seu lugar nos livros de história com a corrupção, as mortes, o sofrimento e a pobreza que provoca. Os estudos de acadêmicos modernos estão  jogando por terra aquilo que, no passado recente, se argumentou serem as vitórias do liberalismo renovado. Sendo assim, que idéia da direita merece ser lembrada como relevância histórica? O império neoliberal está caindo por terra. Na Ásia, o neoliberalismo devastou a região. No Reino Unido, a crise pela qual passa o Partido Trabalhista assinala o fracasso de qualquer tentativa de justificação de programas que destroem o Estado. O Novo Trabalhismo e sua terceira via (''o oportunismo com rosto humano'', nas palavras de um crítico norte-americano) são, na verdade, exemplos de como se promove a marginalização social.


 


Na América Latina, nos anos 90 os governos de direita prometeram que acabariam com as recessões. Não cumpriram a promessa. Depois vieram as pretensões desvairadamente exageradas de que o governo poderia aumentar a renda e a qualidade de vida da população por meio da “estabilização da moeda”. O resultado foi um tremendo fiasco. Agora, eles se propõem a impedir a continuidade da tendência progressista latino-americana por meio da pregação fundamentalista neoliberal contra o “populismo”. A choradeira já está ensurdecedora. Bater eternamente na mesma tecla, utilizando para isso a monopolização dos meios de comunicação, é uma doença política que, em última análise, alimenta o cinismo neoliberal. No Brasil, dizem, só a defesa da austeridade fiscal, das metas inflacionárias e da flexibilidade cambial será capaz de manter a crise política em ''câmera lenta'' — enquanto aceleram a montagem da operação de resgate das reformas previdenciária, sindical e trabalhista.


 


A linha “populista” de Getúlio Vargas


 


A direita certamente tentará novamente acuar o governo Lula com uma enxurrada de denúncias para forçá-lo a se agarrar à agenda econômica. De acordo com os “comentaristas” da “grande imprensa”, Lula depende, cada vez mais, da “ortodoxia” econômica e de um gesto de boa vontade da oposição, representada pelo PSDB e pelo PFL, para a aprovação de temas econômicos no Congresso. (Um detalhe: alguém que domina as técnicas da sociologia moderna poderia estudar como a rádio CBN conseguiu reunir em seu noticiário tão grande quantidade de pregadores do cinismo neoliberal. É, sem dúvida, um fenômeno.)  “O que não houve de populismo ainda é porque o setor financeiro do governo não dá um sinal disso”, disse recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC).


 


O populismo, segundo Norberto Bobbio, é uma manifestação política que tem o povo como inspiração, sem obedecer a uma ''elaboração teórica e orgânica sistemática''. FHC, que gosta de ser bajulado como intelectual, deveria levar essa formulação em consideração. Uma das bobagens que o ex-presidente gosta de divulgar é a de que Lula tende a seguir a linha “populista” de Getúlio Vargas. A verdade é que no trem militar que o levou do Rio Grande do Sul às portas da Capital Federal, na revolução de 1930, Getúlio Vargas usava uniforme cáqui e revólver na cintura — uma roupa que se adequava à estética dos heróis da época, os tenentes rebeldes da década de 20. Mesmo nas pesquisas mais recentes, é o presidente mais lembrado do país. Perto dele, todos os outros parecem figuras pálidas. A principal razão é a fantástica transformação que liderou em pouco mais de duas décadas. O Brasil de 1954 era bem diferente da república bronca de 1930. Era o mais promissor centro de produção industrial da América Latina.


 


O poder da Capital Federal


 


Sob o comando de uma inspetoria federal, o atual Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), estradas começavam a chegar a regiões remotas. Linhas aéreas passaram a conectar o Brasil aos Estados Unidos e às capitais européias. Uma massa de habitantes do campo mudara-se para as cidades, envergando o macacão de operário e organizando-se em sindicatos criados por Getúlio Vargas. A federação frouxa existente até 1930, em que o chefe regional muitas vezes desafiava impunemente o presidente da República, deu lugar a uma em que o poder da Capital Federal passou a ser incontestável. Aconteceu também uma mudança no eixo e na qualidade da política.


 


Antes feita por oligarcas rurais, com base na manipulação dos votos, ela tornou-se crescentemente complexa após a incorporação de forças novas, como sindicatos de trabalhadores. O serviço público, irrelevante antes de Getúlio Vargas, se tornou relativamente bem organizado. O varguismo é uma presença até hoje, como atesta o exemplo do presidente Lula. Mas Lula está longe de ser o único presidente a seguir a herança das receitas getulistas. Juscelino Kubitschek é o caso mais óbvio. Além de Brasília, seu ponto focal de governo foi a criação de indústrias que promovessem a substituição de importações — um pensamento econômico que voltou a ganhar vigor no Brasil do século 21. É o país progredindo. A volta do neoliberalismo, portanto, teria um resultado que todos conhecemos.



 


 


 

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