Profissão: esperança
Antônio Maria Araújo de Morais nasceu no Recife, em 17 de março de 1921. Fez carreira no Rio, como cronista, locutor esportivo, produtor de rádio e compositor (Ninguém me ama, seu maior sucesso). Faleceu devido a um enfarte do miocárdio na madrugada de 15 de outubro de 1964. Vida curta, obra densa. Luís Fernando Veríssimo diz ter sido Antônio Maria uma de suas maiores influências.
Publicado 26/02/2010 14:50
No Evangelho segundo Antonio, de 23 de julho de 1964, definiu-se: “Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, cansado, 43 anos, cardisplicente (isto é: homem que desdenha do próprio coração). Profissão: Esperança”. Seus textos deram base a um espetáculo escrito por Paulo Pontes para o teatro: Brasileiro, profissão esperança. Esta crônica de Antônio Maria foi publicada no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, há quase 50 anos: 19 de junho de 1960.
A fidelidade e o queijo
A gente não imagina que haja ainda quem seja capaz de contar certas coisas e de pedir determinados conselhos. A experiência do viver tranca o homem, cada vez mais, em si mesmo, aconselhando-o a sarar, sozinho, todas as escoriações da alma.
Pois bem, não faz uma semana e um amigo pouco íntimo (desses que a gente chama de amigo porque a palavra CONHECIDO não quer dizer nada) veio fazer-me esta confidência de antiquíssimo modelo: ao chegar em casa, fora do horário habitual, encontrou a mulher e o vizinho… Nessa altura, reticenciou a narrativa, desejando, certamente, que lhe perguntasse COMO e ONDE. Tal pergunta não lhe foi feita, obrigando-o a dizer que estavam os dois sentados à mesa de jantar, tomando café, com queijo. Daí por diante, travou-se, entre nós, o seguinte diálogo:
ELE – Você, o que acha?
EU – De quê?
ELE – De estarem, os dois, tomando café com queijo?
EU – O queijo é mais grave que o café, porém nenhum dos dois quer dizer nada. – E tentei explicar-lhe que oferecer café é uma simples cerimônia, enquanto café com queijo já passa a ser uma intimidade.
ELE – Que devo fazer?
EU – E os cinzeiros?
ELE – No dela, oito pontas; no dele, quatorze.
EU – Havia ponta de cigarro dele no cinzeiro dela, e vice-versa?
ELE – Acho que não. Tenho a impressão que não. Certamente, não.
EU – Então, não há gravidade de espécie alguma, porque está provado que fumaram muito, o tempo inteiro, distantes um do outro, cada qual em seu cinzeiro.
Nessa altura, começou a falar sem fazer-me seu alvo, isto é, começou a pensar, com palavras. Considerou a quebra de confiança, advertiu-se da beleza física do vizinho, blasfemou contra as mulheres em geral, até que, falando realmente comigo, suplicou:
ELE – Eu lhe peço que você me diga, exatamente, o que está pensando sobre o caso. Use de toda a sua franqueza.
EU – O vizinho vai muito à sua casa?
ELE – De vez em quando, telefonar.
EU – Não há motivo para a menor desconfiança. Foi telefonar e, como há alguma intimidade, conversaram.
ELE – Durante muito tempo?
EU – A conversa durou, exatamente, quatorze cigarros dele e oito de sua mulher. (PAUSA) Ela ofereceu-lhe um café e, lembrando-se que havia queijo, ofereceu-lhe uma fatia.
ELE – Mas o queijo, foi ele que trouxe.
EU – Então, já não está mais aqui quem falou.