Profissão: esperança

Antônio Maria Araújo de Morais nasceu no Recife, em 17 de março de 1921. Fez carreira no Rio, como cronista, locutor esportivo, produtor de rádio e compositor (Ninguém me ama, seu maior sucesso). Faleceu devido a um enfarte do miocárdio na madrugada de 15 de outubro de 1964. Vida curta, obra densa. Luís Fernando Veríssimo diz ter sido Antônio Maria uma de suas maiores influências.

Antônio Maria Araújo de Morais No Evangelho segundo Antonio, de 23 de julho de 1964, definiu-se: “Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, cansado, 43 anos, cardisplicente (isto é: homem que desdenha do próprio coração). Profissão: Esperança”. Seus textos deram base a um espetáculo escrito por Paulo Pontes para o teatro: Brasileiro, profissão esperança. Esta crônica de Antônio Maria foi publicada no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, há quase 50 anos: 19 de junho de 1960.

A fidelidade e o queijo

A gente não imagina que haja ainda quem seja capaz de contar certas coisas e de pedir determinados conselhos. A experiência do viver tranca o homem, cada vez mais, em si mesmo, aconselhando-o a sarar, sozinho, todas as escoriações da alma.

Pois bem, não faz uma semana e um amigo pouco íntimo (desses que a gente chama de amigo porque a palavra CONHECIDO não quer dizer nada) veio fazer-me esta confidência de antiquíssimo modelo: ao chegar em casa, fora do horário habitual, encontrou a mulher e o vizinho… Nessa altura, reticenciou a narrativa, desejando, certamente, que lhe perguntasse COMO e ONDE. Tal pergunta não lhe foi feita, obrigando-o a dizer que estavam os dois sentados à mesa de jantar, tomando café, com queijo. Daí por diante, travou-se, entre nós, o seguinte diálogo:
ELE – Você, o que acha?
EU – De quê?
ELE – De estarem, os dois, tomando café com queijo?
EU – O queijo é mais grave que o café, porém nenhum dos dois quer dizer nada. – E tentei explicar-lhe que oferecer café é uma simples cerimônia, enquanto café com queijo já passa a ser uma intimidade.
ELE – Que devo fazer?
EU – E os cinzeiros?
ELE – No dela, oito pontas; no dele, quatorze.
EU – Havia ponta de cigarro dele no cinzeiro dela, e vice-versa?
ELE – Acho que não. Tenho a impressão que não. Certamente, não.
EU – Então, não há gravidade de espécie alguma, porque está provado que fumaram muito, o tempo inteiro, distantes um do outro, cada qual em seu cinzeiro.
Nessa altura, começou a falar sem fazer-me seu alvo, isto é, começou a pensar, com palavras. Considerou a quebra de confiança, advertiu-se da beleza física do vizinho, blasfemou contra as mulheres em geral, até que, falando realmente comigo, suplicou:
ELE – Eu lhe peço que você me diga, exatamente, o que está pensando sobre o caso. Use de toda a sua franqueza.
EU – O vizinho vai muito à sua casa?
ELE – De vez em quando, telefonar.
EU – Não há motivo para a menor desconfiança. Foi telefonar e, como há alguma intimidade, conversaram.
ELE – Durante muito tempo?
EU – A conversa durou, exatamente, quatorze cigarros dele e oito de sua mulher. (PAUSA) Ela ofereceu-lhe um café e, lembrando-se que havia queijo, ofereceu-lhe uma fatia.
ELE – Mas o queijo, foi ele que trouxe.
EU – Então, já não está mais aqui quem falou.

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