Proibido reclamar da pós-graduação no Brasil

O que me chamou atenção foi o choque daqueles que pertencem à academia contra os “intrusos” que estão no lugar errado

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O twitter é a rede social que melhor evidencia a dificuldade humana na comunicação e, apesar dos recorrentes episódios de absurdo, de vez em quando aparecem debates que trazem à tona discursos sociais interessantes. Recentemente, na bolha acadêmica e progressista, duas situações mobilizaram milhares de pessoas: professoras universitárias reclamando, uma do estudante que trabalha e a outra, dos pós-graduandos que reclamam.

Em questão de horas, a viralização do conteúdo, da crítica ao conteúdo, da réplica, tréplica e dos apaziguadores de plantão, que lembram logo “gente, em outubro tem eleição!”. Acho divertido esse fluxo, é um mundo à parte (que agora pertence ao Elon Musk), mas que revela algumas tendências do mundo real. Redes sociais são uma amostra enviesada da realidade e é preciso olhar para elas com cautela, mas, não é preciso descartá-las.

O que me chamou atenção, relevando aqui a responsabilidade individual de quem fala nas redes o que se pode falar privadamente, foi o choque daqueles que pertencem à academia contra os “intrusos” que estão no lugar errado. Sendo eu mesma uma intrusa, do meu lugar vejo o mal-estar que a alteridade provoca, o twitter faz as vezes de cenário para os discursos ecoarem, no limite dos algoritmos.

Historicamente, a universidade no Brasil é espaço para os filhos das elites e classes médias; a expansão de vagas, a implementação de cotas raciais e sociais, a criação de novas universidades país adentro, tudo isso aconteceu ontem, numa linha do tempo de séculos. Além disso, o processo de democratização do acesso ao ensino superior foi suspenso, de 2015 para cá é só ladeira abaixo; com a pandemia, o que parecia impossível de piorar, piorou.

Há quase dez anos não há reajuste nos valores das bolsas de pesquisa; os pesquisadores brasileiros recebem os mesmos 400, 1500 e 2200 reais. Para ilustrar melhor, em 2013, um doutorando ganhava 3,2 salários-mínimos, hoje, 1,8. Sem falar na inflação, que reduziu o poder de compra; e no fato de que o bolsista não pode ter vínculo empregatício, apesar de não ser reconhecido como trabalhador enquanto faz pesquisa.

O leitor pode estar pensando que quase dois salários são muito no país que voltou para o mapa da fome, que pós-graduandos estão mesmo reclamando de barriga cheia. Porém, terei de argumentar, a crise econômica na qual estamos mergulhados não pode ser usada para minimizar a precarização nas condições de vida da população. Se alguma parcela da sociedade deveria arcar com os custos da crise, deveriam ser aqueles que dispõem de mais recursos, o que não é o caso dos estudantes.

Além disso, o resultado da expansão que vivemos anteriormente é que a universidade deixou de ser um espaço somente das elites e classes médias, mas, com a precarização em curso, ela pode voltar a ser. A meritocracia é um mito justamente porque ficciona um mundo no qual basta se esforçar que você terá sucesso, quando na verdade, determinados espaços foram criados para determinados corpos, de modo que se você não tem as condições certas, simplesmente não vai alcançar o que deseja.

O mais cruel é que se alguns conseguem furar o véu da meritocracia, são usados como exemplo de que “basta querer”. É justamente sob esse véu que estão aqueles para quem a universidade, especialmente a pós-graduação, foi criada e mantida no Brasil. Como assim você trabalha e vai chegar atrasado na minha aula? Como assim você está reclamando que a bolsa não garante sua sobrevivência, seu pai não paga o aluguel? É realmente chocante.

Por muito tempo eu acreditei que poderia, através da disciplina quase patológica, ocupar os espaços que não foram criados para mim. Tentei a todo custo me redesenhar para ser mais parecida com o formato da academia. Falhei. Falhei porque sou, antes de tudo, filha da classe trabalhadora e não disponho de recurso hereditário algum. Tudo que tenho eu mesma tive de trabalhar para construir e vivo do meu salário, como qualquer trabalhador brasileiro que tem a chance de estar empregado.

Mas o país que eu desejo é o país do futuro, um país no qual aqueles a quem a academia não se destina recriam esse espaço à sua imagem, semelhança e diversidade. Eu quero um Brasil em que fazer pesquisa seja reconhecido como trabalho, as pessoas tenham acesso à uma educação de qualidade e isso não seja privilégio de poucos. Enquanto o sonho não chega, vamos construindo aos pouquinhos, combatendo a violência dos donos do poder dentro de nossas possibilidades. Afinal, reclamar no twitter não vai pagar o aluguel no fim do mês, mas ao menos, mostra que tem mais gente na mesma labuta.

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