Qual a prioridade, publicidade ou notícia?
Na contramão das muitas evidências contemporâneas sobre o jornalismo das grandes corporações (o ''jornalismo sitiado'') e sobre a espetacularização e a mercantilização da notícia, o discurso de empresários e ''formadores de opinião'' insiste em defender a
Publicado 13/06/2008 22:26
Quanto maior e mais diversificado o número de anunciantes, maior seria a independência e autonomia da mídia, tanto do Estado quanto do próprio poder econômico e, portanto, mais liberdade haveria para que ela exercesse seu papel de servir ao interesse público e bem informar ao cidadão.
Nesse discurso, por exemplo, não há espaço para a existência de ''limites'' à publicidade. Foi esse entendimento que prevaleceu, recentemente, em relação ao projeto do Executivo sobre a fixação de horários para a publicidade de cerveja (ver, neste Observatório, ''Cervejas, publicidade e direito à informação''). Eventuais limites são considerados, pelos empresários de mídia e de publicidade, como cerceamento, ou melhor, censura da ''liberdade de informação comercial''.
Existem, todavia, aspectos da questão geral que são raramente lembrados. Dois exemplos:
1. Qual o espaço total que os anúncios devem ocupar em um jornal, uma revista ou na programação de uma emissora de rádio ou de televisão? Deveria haver algum limite?
2. Deveria haver uma clara demarcação entre o espaço dos anúncios e o espaço das notícias? Qual deveria ter preferência na diagramação ou na programação?
O que vem primeiro?
Essas questões vêm a propósito não só do espaço que tem sido ocupado pela publicidade na grande mídia, como na ausência de distinção entre o espaço dos anúncios e o espaço das matérias noticiosas. Ao observador atento, cada vez mais parece que não é a publicidade que garante a informação na mídia, mas, ao contrário, é a informação que garante a publicidade ao servir de mero suporte ou pano de fundo para os anúncios.
O fenômeno é mais facilmente observável nos jornais, embora não se reduza a eles. A total liberalização do formato, do tamanho e da colocação dos anúncios nas páginas faz com que o leitor seja obrigado a ''garimpar'' a informação – muitas vezes mera coadjuvante na página ou, literalmente, superposta aos anúncios.
Um caso emblemático é a edição da quarta-feira (4/6) do Correio Braziliense [ver abaixo]. Nas páginas 6 e 7 do primeiro caderno, havia um anúncio colorido de página dupla sobre a inauguração de uma rede de lojas de varejo. As notícias funcionam como meras ''molduras'' deste anúncio. Nas páginas 9, 11 e 13, anúncios coloridos da mesma rede estão centralizados nas respectivas páginas e textos de reportagens aparecem superpostos a eles: na página 9, uma matéria sobre a reutilização de caixões pela ''máfia da morte'' está superposta a um anúncio de celulares; na página 11, uma reportagem sobre desnutrição em áreas indígenas terá que ser lida em cima de um anúncio de televisores; e na página 13, matéria sobre violência urbana no Rio de Janeiro tem que ser lida sobre um anúncio de colchões.
Nestes casos, o que vem primeiro: o direito à informação do cidadão ou os interesses comerciais do anunciante, da agência de publicidade e, obviamente, da empresa proprietária do jornal?
''Produzir'' audiências
Estamos assistindo a uma inversão evidente do que deveria ser a função da mídia: prioridade ao interesse público e informação ao cidadão. O mais intrigante é que a essa inversão corresponde um acirramento da disputa ''ideológica'' sobre os papéis da mídia e da publicidade na democracia. Os principais atores e interesses envolvidos, sobretudo empresários de mídia e agências de publicidade, reafirmam seu discurso e, como sempre, denunciam as ameaças do Estado ''à liberdade de expressão comercial''.
Mais de 30 anos depois, parece que a tese defendida pelo pioneiro da economia política da comunicação, o canadense Dallas W. Smythe, em 1977, estava mesmo correta: a principal função da mídia no capitalismo é ''produzir'' audiências para vendê-las ao anunciante.