Riobaldo e as travessias tormentosas

Nossos cursos de formação política bem poderiam estabelecer alguns clássicos da literatura como leitura obrigatória. Riobaldo Tatarana, de Grande Sertão: Veredas, por exemplo, daria uma excelente aula sobre estratégia e tática. Há lições valiosas a se extrair da leitura do mestre Rosa.

Desde o início, Riobaldo intuiu que o demo, o coiso, o pé de bode, era o seu grande adversário. Era necessário derrotá-lo e, um dia, o confronto haveria de se dar entre os dois. O danado é que, naquele sertão confuso, identificar o demo não era coisa fácil. Ainda assim Riobaldo, professor por não ter aprendido outra profissão, jagunço meio ao acaso, desde sempre intuiu que o Hermógenes, a carantonha ruim, a ruindade porejando, era o inimigo a ser derrotado.

Riobaldo transitou de uma margem a outra do grande rio da vida, ou desse grande sertão que é a nossa existência. Formou primeiramente ao lado de Zé Bebelo, mas percebeu que a ordem que esse pregava não lhe convinha. No sertão, ou tões, como gostaria mestre Rosa, aquela ordem não se ajustaria. Ainda era tempo de Joca Ramiro, Riobaldo soube. E perfilou armas daquele outro lado, daquela outra margem. Viver é sempre muito perigoso, aprendeu, e a vida é travessia, sempre.

Riobaldo descobriu que essa travessia às vezes não se faz de uma vez só. Com Medeiro Vaz tentou o Liso do Sussuarão e foi derrotado, tendo que retornar sem ter completado a travessia, Medeiro Vaz pagando com a vida o preço daquele fracasso. Mas terá sido mesmo um fracasso? Há derrotas que são apenas intervalos, breves pausas para a batalha seguinte, ou para a guerra final, é o que parece nos ensinar Riobaldo.

Soldado raso naquela grande batalha, sem cargo de mando, houve um momento em que as coisas clarearam. Hermógenes e Ricardão, sem máscaras, assumiram o seu lado, e comandaram o assassinato de Joca Ramiro. É nesse momento que Riobaldo, de jagunço comandado, se alça a chefe, a senhor de mando. Faz nesse momento uma primeira travessia. Não é mais Riobaldo, o jagunço amigo de Diadorim. É outro, é um que manda, é Tatarana, valente entre valentes, chefe acima dos chefes. A partir daquele momento a guerra só poderia acabar quando um dos dois, Tatarana ou Hermógenes, morresse. Enquanto não houvesse esse desfecho, não poderia haver paz no grande sertão. É nesse momento também que, nos partidários de Joca Ramiro, se instala a desesperança. Nas palavras do próprio Riobaldo Tatarana, não é que tenha dado o medo, deu foi um cansaço de esperança.

Ainda assim, Riobaldo Tatarana empreendeu novamente a travessia do Liso do Sussuarão. Não havia outro caminho. O Hermógenes só seria derrotado dessa forma. O que Medeiro Vaz, em sua sabedoria de chefe veterano e valente, não havia conseguido, Riobaldo, chefe novo, duvidoso às vezes da própria coragem, meteu os peitos e fez, atravessou o deserto para ganhar a guerra.

Vivemos um tempo de guerra, crudelíssimo. Guerra que estamos perdendo, o que parece que alguns ainda não compreenderam. Vivemos um tempo de defensiva, de recuo. O inimigo, nas últimas décadas, reagrupou suas forças e, à frente de um exército poderoso, vitória após vitória, nos encurralou. Não se consegue sair de situações assim apenas levantando alto nossos estandartes e proclamando a nossa pureza, mandando tocar os clarins. É necessário fazer recuos, contramarchas, para avançar um pouco mais adiante. Os objetivos estratégicos é que precisam dar o norte, marcar o rumo, ditar o ritmo da caminhada.

Cunha e Temer equivalem a Ricardão e Hermógenes. Ricardão caiu antes, Hermógenes ficou para o enfrentamento final. E as tropas dos dois foram divididas para que se obtivesse uma vitória. Assim como na literatura, na vida real às vezes as coisas ficam confusas, as águas turvas, a neblina cobre os caminhos. É necessário combinar firmeza com serenidade, e entender que fazemos a guerra, por vezes, em condições que não escolhemos. Novamente é Riobaldo quem nos ensina, que a travessia às vezes nos deixa num lugar muito abaixo de onde queríamos, na margem oposta. É necessário também estabelecer diferenças: Ricardão não era Hermógenes, embora parecessem tanto; Maia também não é Rosso, embora pareçam tanto. Os dois são inimigos, capitaneiam as forças conservadoras, mas não são a mesma coisa. A derrota de um pode ser mais importante agora que a do outro, se olharmos para os objetivos estratégicos.

Estamos perdendo, é preciso admitir isso. Uma pequena fissura no campo inimigo pode nos ajudar muito no futuro. E não nos atazanemos em demasia. Como já disse, precisaremos de muita serenidade e de muita firmeza. Ainda temos muito para ver. E olha que, como Riobaldo, “já vi de tudo neste mundo. Já vi até cavalo com soluço… ─ o que é a coisa mais custosa que há”.

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