Rogai por vós, pecadores

Quanto tempo esperaremos para que a Santa Igreja se desculpe por mais essa afronta à ciência, demonstrada na absurda oposição à pesquisa das células-tronco embrionárias? Serão necessários outros 800 anos para que ela venha a público se manifestar, como fe

Definitivamente, não podemos esperar que a história seja a juíza de mais um crime anunciado. Quem pagará a conta mais uma vez serão milhares de inocentes, assim como os milhões de “hereges” torturados, “bruxos” queimados, “pagãos” excomungados, “índios” escravizados, escravos assassinados, “comunistas” satanizados, dentre tantas outras barbaridades cometidas e assumidas em nome de um deus e a serviço de uma classe reacionária.


 


 


As desculpas pedidas por João Paulo II em 2005, incluídas as atrocidades cometidas pela Igreja nas cruzadas, ditaduras, guerras e outros crimes contra a humanidade em geral, terão como melhor forma de serem expressas se forem impedidos outros erros. Rogamos, em nome do senhor, piedade à CNBB por essa posição dogmática de oposição à ciência e, principalmente, contra uma terapia que pode oferecer aos povos a esperança de cura e regeneração de tecidos e órgãos. Entretanto, mais que o apelo à vida (o que pode soar um tanto quanto dramático), um clamor pela não intromissão ao desenvolvimento científico nacional que se recusa a viver na Idade Média juntamente com a Madre Sé.


 


 


É inadmissível que em pleno século 21, algumas vozes, que parecem ecoar das trevas medievais, continuem a apelar para um debate estéril que prega mais as “santas escrituras” a um mero artigo científico elementar ou a uma constituição que assinala o Estado laico. Infelizmente ainda precisaremos percorrer um longo caminho para consolidar a separação entre Estado e Igreja. Isso não será obra de um ou outro governo, mas de gerações. E nesse processo muitas vidas ainda serão ceifadas pelo obscurantismo religioso, tal como é o caso, por exemplo, das centenas de milhares de mães que já morreram, morrem e morrerão vítimas de abortos clandestinos sem poder contar com assistência médica orientada e legalizada devido à intransigente oposição religiosa. Ou seja, um assunto de saúde pública que deveria ser encarado como tal, é concebido sob as luzes do espírito santo.


 



 
Mas no caso do debate das células-tronco (embrionárias ou adultas) a polêmica talvez seja ainda mais absurda. O debate principal (eivado de superstições, crendices e dogmas) é se embrião é um ser vivo ou não. Mas não são apenas as terapias de células-tronco que sofre perseguição da Igreja. Existem várias outras técnicas biogenéticas no cadafalso da onda neo-inquisitora.


 


 


A título de exemplo, em células vegetais, não imaginamos a agricultura moderna sem a manipulação dos genes. Micropropagação in vitro, rejuvenescimento clonal, cultura de células e tecidos, embriogênese somática, são alguns poucos exemplos de como a população mundial se beneficia das atividades daqueles que por uma exigência histórica são invocados a “brincar de deus” para “salvar” a humanidade. Ou seria a CNBB – ainda mais nesse momento de alardeada crise alimentar – contrária à manipulação da vida vegetal nos laboratórios?


 


 


Na zootecnia também é o mesmo raciocínio. Na pecuária moderna o que impera é a inseminação artificial e a manipulação de embriões e tantas outras técnicas que fazem dos rebanhos muito mais produtivos. Já com o homem, imagem e semelhança de Deus, a bioética parece dar lugar à “teoética”.


 



 
Em nota, a CNBB chantageia em torno da dignidade inviolável da vida humana e, quando lhe convém, apela à ciência para demonstrar que “a partir da fecundação já existe o ser humano com patrimônio genético e sistema imunológico próprio”. Quanta heresia, pois além de uma série de fatores elementares a Lei de Biossegurança apenas autoriza a utilização dos embriões fertilizados in vitro, congelados há mais de três anos ou aqueles considerados inapropriados para a fertilização uterina, com autorização dos pais. E ainda, a Lei proíbe o comércio, a produção e manipulação de embriões tanto para fins reprodutivos ou terapêuticos.


 


 


Dessa forma, apesar de toda a pressão religiosa, o Supremo Tribunal Federal liberou as pesquisas com embriões, mesmo que de forma apertada (dos 11 ministros, apenas seis rejeitaram completamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade do então procurador-geral da Republica, Cláudio Fonteles). Vitórias do Estado laico e da comunidade científica organizada que (em que pese o apoio de um aliado circunstancial que foi o das indústrias de biotecnologia), conseguiram superar o adversário celestial nessa batalha.


 


 


Agora é correr atrás do tempo perdido e se debruçar a pesquisar sobre as células-tronco embrionárias e suas múltiplas aplicações a favor da humanidade. Graças a deus, não temos o Vaticano encravado em nosso solo como a desafortunada Itália. De todas as formas, roguemos ao pai por esses pecadores, pois nessa e em outras matérias eles definitivamente não sabem o que fazem e muito menos o que blasfemam. Perdoai-vos!

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