Saga Amazônica: Gasoduto e Ferrovia Madeira Mamoré

“viver é destino dos fortes, assim nos ensina, lutando, a floresta”. Essa bela e poética estrofe do hino do estado do Amazonas traduz bem a realidade da região amazônica. Tão bela quanto misteriosa. Tão exuberante quanto traiçoeira para quem não domina os seus mistérios.

Construir qualquer coisa na selva amazônica exige mais do que perícia. Exige coragem e determinação férrea. Os entraves são naturais e legais, em decorrência de toda uma legislação específica para a região. Trato aqui de duas dessas grandes empreitadas: a construção da “estrada de ferro Madeira-Mamoré” e o “gasoduto Coari-Manaus”, que acaba de ser concluído.

A Ferrovia Madeira-Mamoré

Na época da construção da ferrovia Madeira-Mamoré as maiores limitações não eram de natureza legal, na medida em que sequer existia legislação ambiental, o que não tornou a empreitada menos difícil. Nada menos que 6 mil vidas ficaram sob os trilhos da “ferrovia do diabo” para que 366 km de estrada permitisse transpor as cachoeiras de Santo Antonio, no rio Madeira, ligando a região boliviana de Guajará Mirim a Porto Velho, em Rondônia.

A Madeira Mamoré Railway Co ou “Ferrovia do diabo” levou em torno de 13 anos para ser construída. Consumiu 549 mil dormentes, 1,2 bilhões de reais (valor de hoje), a falência de várias empresas e a vida de mais de 6 mil operários, tragados pela malária, devorados por feras, dilacerados por jacarés, esmagados pelas gigantescas árvores que estavam sendo molestadas e, aqui e ali, por uma flechada indígena.

A 1ª tentativa de construir a Madeira-Mamoré foi em 1872, a cargo da Public Works, inglesa. Em 1878, depois de 700 toneladas de material perdidos em naufrágio e algumas centenas de mortos, a empresa faliu. Apenas 3 km estavam concluídos.

A 2ª tentativa se deu entre 1878 a 1879. A P&T Collins, empresa americana, conseguiu fazer mais 7 km. Na inauguração o vagão descarilhou. Atolada em dívidas a empresa faliu e deixou para trás, abandonado, todos os maquinários, materiais e centenas de sepulturas de operários americanos, italianos, irlandeses e brasileiros. A P&T Collins experimentou o 2º fracasso.

E a 3ª tentativa se deu entre 1907 e 1912, após a revolução acreana de 1902 e o tratado de Petropolis de 1903, onde a construção da ferrovia era uma das exigências para que o Brasil ficasse com a posse definitiva do Acre. Pelo tratado o governo brasileiro se comprometia a construir a ferrovia, destinada a realizar o escoamento da borracha da Bolivia e também do Brasil.

A empreitada, desta feita, estava a cargo do controvertido americano Percival Farquhar. Em torno de 22 mil trabalhadores foram contratados para a empreitada em diversas partes do mundo, especialmente nos Estados Unidos, Escócia, Dinamarca, Alemanha, Espanha, Portugal, China, Italia, Inglaterra, Brasil e as Ilhas do Caribe.

Em 1912, finalmente, os 366 km da ferrovia ligando Porto Velho a Guajará Mirim estavam assentados sobre 549 mil dormentes e a sepultura de mais de 6 mil trabalhadores de todo o mundo, a quem rendemos o nosso mais profundo respeito.

Todo esse sacrifício humano e material foi inútil. A ferrovia, após um curto periodo de atividade, está totalmente abandonada.

O Gasoduto Coari-Manaus

Neste mês de outubro o gasoduto Coari-Manaus foi finalmente concluído. São 791 km de dutos de 18 e 20 polegadas esparramados pela floresta, atravessando lagos, pântanos, rios caudalosos, incluindo 8 km sob o Rio Negro.

O trajeto completo está distribuído em 279 km de Urucu a Coari; 386 de Coari a Manaus e outros 126 km de ramais para atender a todos os municípios que estão no traçado do gasoduto, ou seja, Coari, Codajás, Anori, Anamã, Caapiranga, Manacapuru, Iranduba e Manaus.
É uma construção de elevada complexidade, feita por empresas nacionais por contrato com a Petrobras. Consumiu 4,58 bilhões de reais, gerou em torno de 14 mil empregos diretos e indiretos e se destina a explorar racionalmente os 129,54 bilhões de m3 de gás natural, atualmente medidos da Amazônia. Abre uma nova fronteira para a economia do Amazonas e de toda região.

Sua construção representa uma epopéia semelhante à da ferrovia Madeira Mamoré, mas, felizmente, com perspectiva econômica bem mais clara, com elevado alcance social e sem vidas humanas ceifadas. Não se tem registro de mortes nessa obra, diferentemente da “ferrovia do diabo” que ceifou mais de 6 mil vidas humanas.

Chega, porém, com 9 anos de atraso, na medida em que pelo protocolo inicial assinado entre o governo federal e estadual a obra deveria ter sido concluída em 2000.

Mas os governos de então, tanto no plano federal (FHC, PSDB) quanto estadual (Amazonino, PFL), eram de orientação neoliberal. Defendiam o desmonte do estado e a privatização de tudo, seguindo a estupidez dos manuais de Wall Street. Com base nessa lógica o então governador Amazonino Mendes fez um edital de chamamento empresarial destinado à exploração e transporte do gás de Urucu até Manaus.

Dentre outras aberrações o edital proibia a Petrobras ou qualquer outra empresa estatal nacional de participar do certame licitatório, optava pelo transporte em barcaças e, o fato mais grave – geralmente ignorado pelos meios de comunicação e os próprios gestores públicos: concedia exclusividade de exploração da jazida por 50 anos ao vencedor.

O edital era claramente tendencioso. Só cabia na American Commercial Line (ACL), uma empresa americana em situação pré-falimentar. Com os envelopes abertos as suspeitas se confirmaram: a “vencedora” foi a ACL. O movimento popular, então, ingressou com uma ação na justiça federal para evitar que esse crime contra o patrimônio nacional fosse executado.

A ação foi subscrita pelo PCdoB, por intermédio da minha assinatura e da Deputada Federal Vanessa Grazziotin; pelo Sindicato dos Petroleiros do Amazonas e pela Federação Única dos Petroleiros (FUP). Conseguimos, liminarmente, suspender o processo licitatório. Enquanto a “batalha” de liminares, contra e a favor, se desenvolvia nos tribunais a empresa americana, como era esperado, faliu e foi vendida como “sucata” por 90 milhões de dólares. O povo venceu.

Sem a nossa ação, portanto, não resta dúvida de que esse debate e muito menos a inauguração do gasoduto não existiria. Pelo simples fato de que essas reservas seriam de propriedade americana, destinadas a especulação nas bolsas de valores ao redor do planeta. É esse o verdadeiro sentido dessa inauguração.

Com a eleição de Lula e Eduardo Braga em 2002, que igualmente defendiam o transporte por gasoduto a cargo da Petrobras, a nossa causa ficou facilitada e a vitória do povo brasileiro e em particular dos amazonenses acaba de se materializar.

A chegada do gás nos milhares de tubos já espalhados pela cidade, tanto para fins industriais e comerciais quanto para uso doméstico, abre uma nova fronteira econômica para a economia regional, baseada na indústria petroquímica. É uma grande vitória. Nem mesmo o barulho das máquinas, cavando valas e enterrando tubos, incomoda. Soa como canção aos ouvidos de quem, como nós, dedicou boa parte de sua vida em defesa dessa causa.

O povo venceu, nós vencemos, o estado e a nação se agigantaram.

Parabéns ao povo amazonense por mais essa conquista!

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