Saga Amazônica: Gasoduto e Ferrovia Madeira Mamoré
“viver é destino dos fortes, assim nos ensina, lutando, a floresta”. Essa bela e poética estrofe do hino do estado do Amazonas traduz bem a realidade da região amazônica. Tão bela quanto misteriosa. Tão exuberante quanto traiçoeira para quem não domina os seus mistérios.
Publicado 13/10/2009 18:35
Construir qualquer coisa na selva amazônica exige mais do que perícia. Exige coragem e determinação férrea. Os entraves são naturais e legais, em decorrência de toda uma legislação específica para a região. Trato aqui de duas dessas grandes empreitadas: a construção da “estrada de ferro Madeira-Mamoré” e o “gasoduto Coari-Manaus”, que acaba de ser concluído.
A Ferrovia Madeira-Mamoré
Na época da construção da ferrovia Madeira-Mamoré as maiores limitações não eram de natureza legal, na medida em que sequer existia legislação ambiental, o que não tornou a empreitada menos difícil. Nada menos que 6 mil vidas ficaram sob os trilhos da “ferrovia do diabo” para que 366 km de estrada permitisse transpor as cachoeiras de Santo Antonio, no rio Madeira, ligando a região boliviana de Guajará Mirim a Porto Velho, em Rondônia.
A Madeira Mamoré Railway Co ou “Ferrovia do diabo” levou em torno de 13 anos para ser construída. Consumiu 549 mil dormentes, 1,2 bilhões de reais (valor de hoje), a falência de várias empresas e a vida de mais de 6 mil operários, tragados pela malária, devorados por feras, dilacerados por jacarés, esmagados pelas gigantescas árvores que estavam sendo molestadas e, aqui e ali, por uma flechada indígena.
A 1ª tentativa de construir a Madeira-Mamoré foi em 1872, a cargo da Public Works, inglesa. Em 1878, depois de 700 toneladas de material perdidos em naufrágio e algumas centenas de mortos, a empresa faliu. Apenas 3 km estavam concluídos.
A 2ª tentativa se deu entre 1878 a 1879. A P&T Collins, empresa americana, conseguiu fazer mais 7 km. Na inauguração o vagão descarilhou. Atolada em dívidas a empresa faliu e deixou para trás, abandonado, todos os maquinários, materiais e centenas de sepulturas de operários americanos, italianos, irlandeses e brasileiros. A P&T Collins experimentou o 2º fracasso.
E a 3ª tentativa se deu entre 1907 e 1912, após a revolução acreana de 1902 e o tratado de Petropolis de 1903, onde a construção da ferrovia era uma das exigências para que o Brasil ficasse com a posse definitiva do Acre. Pelo tratado o governo brasileiro se comprometia a construir a ferrovia, destinada a realizar o escoamento da borracha da Bolivia e também do Brasil.
A empreitada, desta feita, estava a cargo do controvertido americano Percival Farquhar. Em torno de 22 mil trabalhadores foram contratados para a empreitada em diversas partes do mundo, especialmente nos Estados Unidos, Escócia, Dinamarca, Alemanha, Espanha, Portugal, China, Italia, Inglaterra, Brasil e as Ilhas do Caribe.
Em 1912, finalmente, os 366 km da ferrovia ligando Porto Velho a Guajará Mirim estavam assentados sobre 549 mil dormentes e a sepultura de mais de 6 mil trabalhadores de todo o mundo, a quem rendemos o nosso mais profundo respeito.
Todo esse sacrifício humano e material foi inútil. A ferrovia, após um curto periodo de atividade, está totalmente abandonada.
O Gasoduto Coari-Manaus
Neste mês de outubro o gasoduto Coari-Manaus foi finalmente concluído. São 791 km de dutos de 18 e 20 polegadas esparramados pela floresta, atravessando lagos, pântanos, rios caudalosos, incluindo 8 km sob o Rio Negro.
O trajeto completo está distribuído em 279 km de Urucu a Coari; 386 de Coari a Manaus e outros 126 km de ramais para atender a todos os municípios que estão no traçado do gasoduto, ou seja, Coari, Codajás, Anori, Anamã, Caapiranga, Manacapuru, Iranduba e Manaus.
É uma construção de elevada complexidade, feita por empresas nacionais por contrato com a Petrobras. Consumiu 4,58 bilhões de reais, gerou em torno de 14 mil empregos diretos e indiretos e se destina a explorar racionalmente os 129,54 bilhões de m3 de gás natural, atualmente medidos da Amazônia. Abre uma nova fronteira para a economia do Amazonas e de toda região.
Sua construção representa uma epopéia semelhante à da ferrovia Madeira Mamoré, mas, felizmente, com perspectiva econômica bem mais clara, com elevado alcance social e sem vidas humanas ceifadas. Não se tem registro de mortes nessa obra, diferentemente da “ferrovia do diabo” que ceifou mais de 6 mil vidas humanas.
Chega, porém, com 9 anos de atraso, na medida em que pelo protocolo inicial assinado entre o governo federal e estadual a obra deveria ter sido concluída em 2000.
Mas os governos de então, tanto no plano federal (FHC, PSDB) quanto estadual (Amazonino, PFL), eram de orientação neoliberal. Defendiam o desmonte do estado e a privatização de tudo, seguindo a estupidez dos manuais de Wall Street. Com base nessa lógica o então governador Amazonino Mendes fez um edital de chamamento empresarial destinado à exploração e transporte do gás de Urucu até Manaus.
Dentre outras aberrações o edital proibia a Petrobras ou qualquer outra empresa estatal nacional de participar do certame licitatório, optava pelo transporte em barcaças e, o fato mais grave – geralmente ignorado pelos meios de comunicação e os próprios gestores públicos: concedia exclusividade de exploração da jazida por 50 anos ao vencedor.
O edital era claramente tendencioso. Só cabia na American Commercial Line (ACL), uma empresa americana em situação pré-falimentar. Com os envelopes abertos as suspeitas se confirmaram: a “vencedora” foi a ACL. O movimento popular, então, ingressou com uma ação na justiça federal para evitar que esse crime contra o patrimônio nacional fosse executado.
A ação foi subscrita pelo PCdoB, por intermédio da minha assinatura e da Deputada Federal Vanessa Grazziotin; pelo Sindicato dos Petroleiros do Amazonas e pela Federação Única dos Petroleiros (FUP). Conseguimos, liminarmente, suspender o processo licitatório. Enquanto a “batalha” de liminares, contra e a favor, se desenvolvia nos tribunais a empresa americana, como era esperado, faliu e foi vendida como “sucata” por 90 milhões de dólares. O povo venceu.
Sem a nossa ação, portanto, não resta dúvida de que esse debate e muito menos a inauguração do gasoduto não existiria. Pelo simples fato de que essas reservas seriam de propriedade americana, destinadas a especulação nas bolsas de valores ao redor do planeta. É esse o verdadeiro sentido dessa inauguração.
Com a eleição de Lula e Eduardo Braga em 2002, que igualmente defendiam o transporte por gasoduto a cargo da Petrobras, a nossa causa ficou facilitada e a vitória do povo brasileiro e em particular dos amazonenses acaba de se materializar.
A chegada do gás nos milhares de tubos já espalhados pela cidade, tanto para fins industriais e comerciais quanto para uso doméstico, abre uma nova fronteira econômica para a economia regional, baseada na indústria petroquímica. É uma grande vitória. Nem mesmo o barulho das máquinas, cavando valas e enterrando tubos, incomoda. Soa como canção aos ouvidos de quem, como nós, dedicou boa parte de sua vida em defesa dessa causa.
O povo venceu, nós vencemos, o estado e a nação se agigantaram.
Parabéns ao povo amazonense por mais essa conquista!