São Paulo: a um passo dos métodos medievais

Anunciada no jornal nacional desta quarta-feira, como criativa e inovadora solução para livrar as calçadas dos incômodos causados pelos usuários de crack, uma ''engenhoca'' (palavras da emissora) de baixo custo e alta eficiência – um cano de PVC com vário

A reportagem foi exibida no Jornal Nacional  de 24 de junho, quarta-feira, e contou primeiro com o depoimento de dois peões da construção civil, com misturador de vozes e rosto na penumbra, declarando que ''a gente pede, pede, e eles não saem da frente da obra. Então a gente abre água, e eles vão pro outro lado da rua''.
Logo após, a reportagem segue entrevistando um funcionário de hotel que queixa-se de haver perdido cerca de 70% do movimento no local, da região que  a reportagem chama de ''nova cracolãndia''. Este trabalhador também não foi identificado. Quanto aos moradores de rua e usuários da droga, porém, nenhum cuidado foi tomado. Todos, sem exceção, tiveram seus rostos mostrados e bem mostrados. Inclusive alguns com idade duvidosa, aparentando, quem sabe, menos do que a idade legal preconizada pelo ECA para aparecer em tal situação. Também apareceram pessoas em flagrante consumo de  drogas, o que pode muito bem ser tipificado como apologia e indução ao uso, já que a reportagem foi transmitida em horário nobre e com censura livre.


 


 


Como contraponto,  o argumento do que deveria ser a autoridade competente chegou a ser patético: Afirmou que a prefeitura não concordava com esta iniciativa de molhar os usuários. E que em breve seria inaugurado um centro de convivência para que os ''drogados'' saíssem da rua. Que não adiantaria molhar ali, eles iriam para a outra calçada! Aí termina a reportagem e começa a comédia.


 


 


A rua não é opção automática


 


Quem tem ou teve alguma informação sobre dependência química, população de rua, crianças e adolescentes  em situação de risco e/ou abandono, jovens adultos envolvidos em atos infracionais tem noção do despautério de alguém supor que um centro de convivência, por mais babilônico que seja, será capaz por si só, de tirar esta imensa massa de excluídos de onde eles estão. Porque se estão nas ruas, ao contrário do moralismo reinante, não foi porque um belo dia levantam de sua confortável cama, tomam seu substancial café, abandonam seu armário lotado de roupas, sua escola de qualidade, seu emprego satisfatório e bem remunerado, relações familiares saudáveis e resolveram ? Vou morar na rua. Não é assim que acontece.


 


 


A crise tirou o homem do campo



 


 


O êxodo rural ocorrido a partir da revolução verde, combinado com as sucessivas crises econômicas, efeitos colaterais da política neoliberal impostos a partir da década de 80 notadamente na América Latina resultaram nesta Babel: migrantes de todo o campo, sonhando com uma vida melhor nas periferias das cidades. O resto da história é conhecido: A pauperização, a falta de política habitacional, educacional, de saúde, social, e, e, e, e. Bem, para quem estava acostumado ao horizonte da lavoura, ou do pampa, ao alimento pouco, mas colhido na roça e compartilhado com vizinhos, a mudança para os cinturões de miséria das metrópoles certamente deve ser simplesmente enlouquecedor. A falta de espaços, de ética, de convivência, de qualificação, fizeram a primeira leva de moradores de rua, estes com o álcool como droga de eleição.


 


 


A tal da Força de Vontade



 


 


Claro que em megacidades como São Paulo, que aparenta ser a babel de consumo, onde todas as chances podem dar certo, onde basta ter competência, todos são chamados. São Paulo é a cidade da malfadada ?Força de Vontade?. Como se houvesse vagas para todos estes aspirantes a vitoriosos despejados diariamente em São Paulo e em outras metrópoles. Como quem faz concurso públicos com dez vagas e vinte mil inscritos, bastando  a tal Força de Vontade. Este ser poderosérrimo, que faz com que alunos pobres, negros, de escolas desaparelhadas, filhos de pais semi-analfabetos, ensinados por professores mal-remunerados, não precisem de cotas para entrar nas  Universidades Públicas. Precisem só deste esforço, muito esforço e… força de vontade.. Aquela coisa que os patrões estadunidenses não conseguiram, não tiveram para se aprumar agora durante a crise: eles precisaram do auxílio, e bem grande do Estado. Será que rico não tem Força de Vontade?Pois é este esforço e esta força de vontade que a polícia e o Serviço Social ou seja lá o que for aquilo de São Paulo acha vai usar para resolver o problema dos moradores de rua e da drogadição de São Paulo.


 


 


Crack: Começamos a entender  o que fazer



 


 


Algumas coisas são certas. Uma, o crack é uma droga relativamente nova, quanto mais se estuda, escreve e pesquisa, mais se compreende que pouco que se sabe a respeito. Algumas conclusões importantes  é que o problema maior não é a desintoxicação: O X da questão é o pós, A saída, o dia depois. A reformulação de toda a vida do usuário, de sua família, a reinserção na escola, que não pode ser a mesma, e o mais complicado: A ressocialização e a recapacitação para o trabalho. Algumas comunidades terapêuticas estão profissionalizando ex-dependentes, mas este não pode ser o único caminho. Outra questão, tão complicada quanto, é o controle das comunidades terapêuticas, algumas funcionando com alvarás provisórios, em condições discutíveis. Certo que para uma família que convive com o tormento de um usuário dentro de casa, a solução pode parecer um alívio. Mas o controle deve ser feito pelo poder público. A simples compra de vagas em fazendas terapêuticas pode ser uma resposta imediata para a opinião pública. E depois? O Estado paga a conta, mas quem dá conta do estrago? Como funcionam as  clínicas que priorizam a religiosidade como tratamento? Quem garante a qualidade médica deste trabalho?



 


 


A importância das políticas públicas



 


 


Quando falamos em moradores de rua usuários de drogas, temos que considerar também que vários destes já possuíam ou constituem e mantém núcleos familiares estáveis. Nestes casos torna-se mais fácil a aproximação e encaminhamento para programas sociais, inclusive para desintoxicação. Qualquer vínculo afetivo é um sinalizador importante paraa recuperação. Mas o trabalho oferecido tem que falar a língua do morador de rua. Os programas de redução de danos, que absurdamente ainda não são compreendidos nem incentivados, e que tantas mortes poderiam evitar. E deveriam    tem que fazer parte do dia-a-dia das populações de rua. Se não fazem, ouso dizer, é porque não há interesse de alguns governos moralistas que não os implementam e assim deixam de evitar estas mortes, estas contaminações . Devem, portanto, ser responsabilizados por isto.


 


 


Cuidado com os exemplos medievais!



 


 


Sou bairrista, apaixonada por Porto Alegre, mas minha segunda cidade do coração é São Paulo. Não que aqui em minha cidade não tenha sido também atingida por esta epidemia. Mas a crueldade gaúcha é menor. Cada vez que  visito Sampa, de uns anos para cá,  vejo também aumentar assustadoramente a massa de jovens moradores de rua. Cada dia maior a Crackolândia. A Praça da República, cada vez mais tomada por excluídos. Contou-me um motorista de táxi que algumas vans costumam despejar mendigos e moradores de rua de outras cidades. Não tenho comprovação. Mas seguranças embaixo dos viadutos, de coletes pretos e cassetetes, para impedir que moradores de rua ocupem o espaço, esta política social da prefeitura, eu vi.  Passeando pela cidade, agora em maio, indo pegar o ônibus em Tatuapé para Guarulhos, passei por um local que não sei o nome. Próximo a um Shopping, zona leste, na beira do que deve ser um esgoto, uma tira de terra de uns 4m. Casebres amontoados quase caindo dentro da água podre. Uma breve faixa de terra, lotada de casebres amontoados, ao lado de um paraíso de consumo. Uma das tantas deste mundão capitalista. E pensar que  todos somos iguais perante a lei. Só que alguns são mais iguais.


 


 


Por enquanto os trabalhadores das obras estão jogando água gelada. Deixe eles lembrarem que na Idade Média costumavam atirar óleo fervente de cima dos castelos nos invasores para ver… Buenas, melhor não dar o exemplo. Podem se inspirar.


 


 


Veja aqui a reportagem da globo

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