Senhora

As luzes do corredor do shopping incidiram no brocado de Teresa; um brocado azul com desenhos de flores, de cima a baixo, tão luzentes quanto os refletores embutidos nas paredes do shopping. Ela não piscou nem contraiu as pálpebras, visto que, de uns tempos para cá, sua vida se cercara de luxo e de olhos prenhes de cobiça.

O corpo não se abaulara, inda que contraindo uma redondez com curvas escassas, própria de silhuetas resistentes à frouxidão das carnes. Seus cinquenta anos redondos, ela os exibe sem medo da devassidão das luzes dos shoppings.

Há 25 anos não havia o shopping com a passarela luzidia. No lugar, um pardieiro fechado, abandonado, remetendo à lembrança do porto na frente do Cais da Alfândega. A calçada, um abrigo de mendigos, bêbados e um comércio miúdo de bebidas, junto ao consumo de liamba obtida com sacrifício por gentes com os pés nos chãos, a roupa em farrapos.

Teresa, então estudante de medicina, cursou até o segundo ano. O uso do jaleco branco sobre a calça da mesma cor, entediou-a de tal modo que passou a evitar o espelho para não se apropriar de vez do senso de ridículo. Ora… Com um pai não rico mas dono de farmácia e de fazenda, nunca se deixaria pilhar por demandas comuns à época, à sua idade; mesmo porque, já trabalhava no ofício de analista de sistemas numa empresa estatal; com salário mediano, o suficiente para se ver proprietária de um apartamento pequeno, de dois quartos. Morar sozinha seria o mesmo que obter a carta de alforria, tão necessária a seu pronunciado instinto de mulher.

Assim, crendo-se livre das amarras do patriarcalismo de onde viera, soube juntar à autonomia de viver sem as prebendas da família, o uso de blusas de rendas finas, transparentes, sobre calças de algodão grosso, entrançado; as calças, de uma cor só ou com listas da largura de dois dedos, coloridas, da cintura aos pés. Nada com os costumes hippies, inda que borrifando as orelhas, o pescoço, do patchuli terroso. Com um cravo branco na orelha esquerda, andando entre mendigos, transeuntes vagos, liambeiros, conheceu José Borromeu; ali mesmo, nas ruínas do Cais da Alfândega.

Primeiro ele elogiou o uso do cravo branco na orelha esquerda; mas não gostou da cor. Sumiu por cinco minutos e voltou com outro cravo, vermelho ou quase isto, comprado a uma florista na Rua da Moeda. Conforme seu juízo, o vermelho assentaria no perfil rebelde de Teresa. O costume de beber junto a pobres pareceu-lhes uma herança bolchevique, acentuada com o uso de chinelo com solado fino e tiras de couro entrançadas. Na semana seguinte, reencontraram-se no mesmo lugar; esquerdizóides, anárquicos.

Seis meses depois, estavam casados. A cerimônia se deu numa casa alugada na beira-mar; celebrada por um padre da Igreja Brasileira, remunerado conforme a instância hierárquica do ritual nas convenções sociais. Teresa não se livrara de todo do rigor patriarcal contraído na educação sob o copiar da fazenda do pai.

O filho nasceu seis anos depois de exaustivas convergências no dia a dia. José Borromeu, àquela altura, trouxera a mulher para a militância comunista. Ela deu-se tanto quanto se dera ao marido, descobrindo as nuances das lutas de classes. Cambado, José Borromeu entendiou-se, rendeu-se à rotina no convívio com lúmpens do Cais da Alfândega.

Ela deixou-o, mesmo que sob espessas gotas de choro instiladas dos olhos azevichados, da cor de seus cabelos.

Teresa encheu-se de ensinamentos no estudo do programa do Partido Comunista, sorveu-os sem o cuidado de apreciá-lo no permanente confronto entre uma demanda e o meio que a gerou. Perdeu-se no emaranhado de ideias. Ao mesmo tempo, amadureceu como analista de sistemas. O filho já tem 25 anos.

José Borromeu confirmou suas suspeitas sobre a incapacidade de os lúmpens empreenderem a revolução social.

A silhueta de Teresa destilou perfumes na passarela do shopping, destilando saudades na memória de José Borromeu. Sua elegância, porém, deu conta da distância entre os dois.

– Ela agora é diretora executiva da empresa – José Borromeu ouviu do amigo ao lado.

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