Sobre o fascismo
O fenômeno fascista desgraçadamente ressurge hoje no Brasil de Jair Bolsonaro, uma figura caricata sem densidade moral, intelectual, política ou acadêmica, mas com firme disposição de fazer o jogo sujo da insaciável burguesia capitalista brasileira.
Publicado 17/08/2020 18:20
Ligou-me o meu amigo Beppe Molisano para me convidar para a Pastaciutta Antifascista que ele pretendia preparar para compartilhar comigo no dia 25 de julho, celebrado anualmente na Itália pela queda de Mussolini em 1943, com um singelo prato de massas com molho de tomates. Como me encontro em obsequioso retiro etílico num tonel de vinho em São Roque, para me prevenir do contágio do terrível Covid-19, terapia de resto reconhecida pela ciência, disse-lhe que ele teria que vir na data em questão para a vinícola minha hospedeira, sem se esquecer de trazer o prato de massas.
A efeméride é importante porque o fascismo italiano, liderado pelo infame ditador, Benito Mussolini, teve consequências desastrosas para o país, seu povo e por outros afetados pela insanidade do regime. De fato, Mussolini tirou a liberdade dos cidadãos italianos; destruiu a democracia; acabou com a independência dos tribunais; cooptou as forças armadas; criou as gangues de apoio, posteriormente oficializadas numa brutal milícia; tornou-se cúmplice do nazismo; foi responsável por 3.000 italianos mortos em Espanha; 140.000 italianos mortos em Rússia; 30.000 italianos mortos em Grécia; 300.000 italianos mortos em outras frentes de batalha; enviou 8.500 judeus italianos para Auschwitz; matou 1.000.000 de etíopes na guerra colonial, na qual usou agentes químicos proibidos por convenções internacionais; exilou 15.000 italianos; condenou 5.000 italianos nos tribunais de exceção, incluindo 700 menores; destruiu economicamente a Itália e comprometeu a soberania do país por décadas.
Não obstante seja o infame legado bastante reconhecido, no passado recente o fenômeno do fascismo tem sido distorcido e objeto de falsificação histórica, na medida que o fenômeno vem atribuído às forças de esquerda pelos neofascistas. Tal desinformação tem sido acolhido pelos ignorantes, mas propagada por elementos fortemente vinculados às classes dominantes, no seu habitual jogo de opressão. Recentemente, um velho conhecido meu, o Joaquim Manoel, mais conhecido por Joca, um decadente cripto fascista em processo de plena evolução para o perfil de pleno fascista, questionou-me sobre a existência de um eventual “fascismo de esquerda”.
Ora, o próprio Mussolini, em discurso na Câmara dos Deputados em 1921, afirmou que a política econômica fascista seria liberal e não socialista. “O fascismo está destinado a representar uma síntese entre as teorias indestrutíveis do liberalismo econômico e as novas forças do universo do trabalho”. Anteriormente, em 1920, Mussolini havia escrito no seu Il Popolo d’Italia que “O indivíduo podia tolerar o Estado quando era simplesmente um soldado ou um policial. Mas agora o Estado é tudo: banqueiro, fornecedor de créditos, proprietário de cassinos, cafetão, segurador, carteiro, ferroviário, empreendedor, industrial, professor… O Estado controla tudo, causando apenas danos: cada uma de suas atividades é um desastre”.
Em setembro de 1922, Mussolini reafirmou com toda a clareza a sua plataforma ideológica fascista nos seguintes termos; “Queremos retirar do Estado todos os seus poderes econômicos. Basta de ferroviários estatais, carteiros estatais, seguradores estatais. Basta desse Estado mantido à custa dos contribuintes e pondo em risco as exauridas finanças do Estado italiano”.
No campo liberal, num exercício de clássico oportunismo muitas vezes repetido no futuro, sabia-se que as liberdades democráticas seriam suprimidas, mas acreditava-se que o regime se opunha ao avanço dos direitos sociais e que, se fracassado, a culpa seria exclusivamente de Mussolini. Os burgueses capitalistas encastelados nos bancos e sociedades financeiras poderiam continuar a trabalhar com os seus eventuais sucessores, corrompendo-os, como sempre.
Antonio Gramsci foi um dos primeiros intelectuais a identificar a natureza real do fenômeno fascista, ao escrever em 1920 chamando-o com muita precisão de “a face violenta do capitalismo” e às gangues milicianas como as encarregadas das tarefas sujas que a sociedade burguesa não podia desempenhar na legalidade. Posteriormente, já na década de 1930, Palmiro Togliatti denominou o fascismo de uma ditadura da classe burguesa capitalista ao mesmo tempo que um regime reacionário de massa.
Segundo Togliatti, o fascismo desenvolveu uma política de concentração de capitais, a qual fez prevalecer o capitalismo financeiro sobre toda a economia real do país. No processo, o fascismo favorece o reforço do capital financeiro em detrimento dos múltiplos interesses sociais. O fascismo seria, então, representativo de uma tendência inerente a todos os países capitalistas, como forma política degenerativa, nascida no período do imperialismo, e como firme expressão da vocação das classes dominantes de abandonar o terreno da democracia.
Por sua vez, o maior historiador brasileiro de todos os tempos, o pranteado Luiz Alberto Moniz Bandeira, escreveu em 1969 que “o fascismo, ao contrário do que muitos imaginam, não constitui um fenômeno particular da Itália e da Alemanha, que, em determinada época, ameaçou alastrar-se pelo mundo. Ele surge onde e quando o capital financeiro não mais consegue manter o equilíbrio da sociedade pelos meios normais de repressão, revestidos das formas clássicas da legalidade. Naturalmente, segundo as condições específicas de tempo e de lugar, o fascismo assume características e cores diferentes, mas, no essencial, permanece como um tipo de Estado peculiar, um sistema de atos de força e de terror policial, de contra-revolução permanente. É o regime da guerra civil declarada que se institucionaliza”.
Parece claro, tanto pela avaliação do criador original do fascismo, o ditador Benito Mussolini, e seguidores, bem como pela dos opositores, que o regime é uma criação capitalista para fincar suas afiadas garras de controle econômico mais profundamente no tecido social dos Estados. A inspiração original de ordem liberal não é necessariamente aquela definitiva, servindo, apenas quando conveniente, como propaganda política no sentido de alimentar quadros populares em apoio da causa fascista, podendo ser descartada quando se fizer oportuno.
De fato, o fascismo não poderia ser uma força política eficaz sem uma razoável organização de massas. Para o fim de mobilização política das massas, o regime fascista lança mão, não apenas de notícias falsas, de falsificações históricas, cretinismos e disparates diversos, como aqueles de meu conhecido Joaquim “Joca” Manuel. O fascismo irá também disseminar a propaganda da classe dominante através de vulgarizações sucessivas, de tal maneira que as classes populares possam aceita-la, ainda que sem entende-la, e mesmo que contrária aos seus interesses mais fundamentais.
Este é o fenômeno fascista que desgraçadamente ressurge hoje no Brasil de Jair Bolsonaro, uma figura caricata sem densidade moral, intelectual, política ou acadêmica, mas com firme disposição de fazer o jogo sujo da insaciável burguesia capitalista brasileira. Essa estará com ele até o momento em que seus interesses básicos de segurança e rentabilidade estiverem ameaçados ou turbados, ainda que a custo das instituições do Estado de Direito e do bem-estar mais básico das classes populares brasileiras e do patrimônio nacional, como o meio-ambiente.
E foi assim que, no Dia do Antifascismo, 25 de julho de 2020, juntei-me prazerosamente ao meu querido amigo, Beppe Molisano, e aos nossos queridos irmãos e irmãs antifascistas italianas e do mundo afora, para celebrar o fim de uma era tanto infame quanto desastrosa, no ano de 1943. Da mesma maneira quis relembrar os nossos melhores e mais preciosos valores humanísticos, incluindo a profundidade espiritual, a de sentimento, a de solidariedade, da mesma forma que a esperança de um melhor mundo. Não sou indiferente! “Avanti o popolo”!, disse o Beppe Molisano ao mesmo tempo em que abria as quentinhas com a pastaciutta al pomodoro.