“Sonhos Roubados”: Fugindo do estima

Sandra Werneck retira seu filme da estética do “filme favela” ao mostrar o cotidiano de três garotas adolescentes num aglomerado carioca

           Um dos problemas dos chamados “filmes de favela” é passar a idéia de que as atividades dos moradores dos aglomerados são dominadas pelo tráfico e suas ramificações. Ainda que predomine o medo, a tensão e o risco de morte, eles  encontram respiradouros, por terem que sobreviver em meio às carcomidas estruturas sociais capitalistas, que lançaram estes impasses sobre seus ombros.

            Embora milícias, traficantes, contraventores façam parte de seu dia-a-dia; eles não são o centro da narrativa de “Sonhos Roubados”, que Sandra Werneck retirou do livro de Elaine Trindade, “As Meninas da Esquina”. O tráfico entra pelas nesgas nas ações do trio de adolescentes, que enquanto enfrenta as falhas na estrutura educacional, ganha a vida entregando o corpo por alguns trocados, vive paixões ligeiras, frustrações por famílias desfeitas e encontra emprego que pode redimi-lo.

             Mas o que vale em seu filme é não ter, com a ajuda de seus parceiros roteiristas Michelle Franz, Adriana Falcão, Paulo Halm, José Joffily e Maurício Dias, lançado o trio secundarista, Jéssica (Nanda Costa), Sabrina (Kika Farias), Daiane (Amanda Diniz) no redemoinho do tráfico, como desculpa para seus impasses. No aglomerado em que elas vivem há vida efervescente, diversificada, com uma composição social que vai da cabeleireira, mecânico de bicicleta, torneiro, lojista, ao comerciante chinês, com predominância de trabalhadores, jovens, donas de casa, idosos, como em qualquer bairro do Rio de Janeiro.

              Fascínio pelo traficante

               É neste efervescente cotidiano que transcorre a existência de Jéssica, Sabrina e Daiane. Cada uma delas tem seus próprios conflitos. Jéssica, 17 anos, mãe de uma menina de colo, despachada, brigona, entra de cabeça no que vem pela frente, sem culpa; Sabrina, frágil, sorridente, oscila entre o deslumbre e o medo do abandono; Daiane, 15 incompletos, tem a vida mais estável, mas, assediada pelo tio Pery (Daniel Dantas) adere à ciranda de sexo, bebidas nos bares, bailes funk com as amigas. Uma vida que lhes parece natural, uma vez que as alternativas ainda não lhes visíveis.

               O trio se locomove em alta velocidade por um espaço onde, naturalmente, encontra traficante. Ele não é o fator determinante da vida do trio adolescente, porém, a forma como Jéssica apresenta um deles, Anderson (Silvio Guindane), às amigas mostra o lugar por ele ocupado em seu meio social. Ela parece delirar com a ousadia dele durante assalto a um carro forte. É fator de atração, de glamour visceral para Sabrina.  Êxtase e testosterona se fundem no encontro deles. Ela, Sabrina, se entrega a Anderson como uma garota faz com seu ídolo. Eletrizante.  E nem por isto menos chocante, pelo poder de influência que o traficante exerce sobre garotas como ela.

                Interessante que Sandra Werneck nem seus co-roteiristas amenizam este poder de atração. Ele perdura até surgir, como é natural, a consequência dessa relação. Entra em discussão a questão do aborto. Talvez a visão cristã, subconsciente de Sabrina, a impeça de concretizá-lo. E ela, como muitas garotas de sua idade, tenha que cuidar do filho como pode. É perfeito contraponto para o expectador analisar o comportamento do traficante Anderson, e o do presidiário  negro, feito com sensibilidade por MBill.

                O primeiro é temerário, aproveitador, usa Sabrina como objeto sexual. Tudo nele dá impressão de urgência, de fugacidade, de desfrutar tudo antes de morrer jovem. Já o presidiário, não. É comedido, centrado, reflexivo. Mesmo tendo Jéssica como esposa comprada, usada nos dias de visita, evita a brutalidade. É o ponto de equilíbrio entre crime, culpa e redenção. Não só dele, como também de Jéssica. A cumplicidade surgida entre eles dita a opção de vida a dois que tomam.

                Tradução dos conflitos vividos pelas adolescentes que sofrem assédio sexual e estupro na família, o dilema da angelical Daiane, frágil elo do trio adolescente, simboliza a luta das mulheres vítimas desses crimes. Sua relação com a cabeleireira Dolores (Marieta Severo) faz renascer a crença na vida, a confiança no outro, o olhar ao redor e as saídas. Ainda que em seu aniversário de 15 anos, sonho de meninas de todas as classes sociais, sua alegria tenha sido incompleta, ela emerge para a vida não mais como vítima de seu meio.

                 O fecho dado por Sandra Werneck a “Sonhos Roubados”, cheio de esperança, o faz despregar-se do conformismo e pessimismo dos “filmes de favela”, que não se constituem num gênero, mas deram efetiva contribuição à cinematografia nacional ao chamar atenção para os riscos criados pelo “crime organizado”. O que não é negligenciável.

Sonhos Roubados”. Brasil. 2010. Drama. 85 minutos. Roteiro: Michelle Franz, Adriana Falcão, Paulo Halm, Sandra Werneck, José Joffily e Maurício Dias, baseado no livro “As Meninas da Esquina”, de Eliane Trindade. Direção: Sandra Werneck. Elenco: Nanda Costa, Kika Farias, Amanda Diniz, Marieta Severo, Nelson Xavier, Daniel Dantas, Ângelo Antônio.

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