“Tropicália”: Pela metade 

Documentário do brasileiro Marcelo Machado tenta recuperar o movimento tropicalista, sem contextualizá-lo em seu real momento histórico nacional e internacional

O melhor do documentário “Tropicália” não é o que se vê na tela, durante 89 minutos. Mas o que foi mantido fora dela. As múltiplas motivações político-culturais que, à sua maneira, resistiram à Ditadura Militar (1964/1985). Mostraria não só a força do Tropicalismo, mas o poder catalisador do movimento político-cultural brasileiro, que preenchia no período pré-AI-5 (Ato Institucional Nº 5), de 13/12/68, o vazio deixado pelos partidos e lideranças políticas, proibidos de se organizar. E se veria que, como em qualquer momento histórico, ele brota da luta político-ideológica e não apenas da ação de dois personagens, por mais geniais que sejam.

Esta, no entanto, não foi a opção do diretor Marcelo Machado e seu corroteirista Di Moretti. E vale o que se vê na tela. Optaram por um longo flashback, a partir da entrevista de Caetano Veloso e Gilberto Gil a dois entrevistadores da TV Portuguesa, em seu exílio europeu. Serve assim como memória de dois exilados que avaliam sua participação num importante movimento musical, num período de efervescência cultural, mas de fortes restrições às liberdades de manifestação de qualquer natureza. E foi ceifado pela brutal intervenção dos generais ditadores, via AI-5, que a tudo proibiu.

É neste mergulho, portanto, que reside a maior força e, também as maiores fragilidades de “Tropicália”. A dupla Machado/Di Moretti centra a narrativa (e trata-se disto) na ação de Veloso/Gil – o eixo principal do tropicalismo – e isolam outros participantes do movimento, embora eles estejam em vários entrechos, casos dos Mutantes (Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias), Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat. Mas faltam outros segmentos musicais, brotados daquele momento histórico: as canções de protesto de Sidney Miller e Geraldo Vandré, a MPB noelista de Chico Buarque e a Bossa Nova recriada de Tom Jobim e Vinícius de Morais, para estabelecer parâmetros entre eles.

Influências são multiplas

Ambos são frutos dos mesmos festivais que engendraram o Tropicalismo. Pois se, como diz Gilberto Gil, ele é “coisa do momento” (um belo insight), os outros emergiram desse mesmo “instante”: o de catalisador das energias, visões e idéias reprimidas pelo Golpe Militar de 64. E encontraram nas demais manifestações culturais (teatro, cinema, artes plásticas, literatura), não só na música, o canal que lhes dessem visibilidade, porquanto a organização político-partidária democrática, de esquerda, popular, estava cerceada. Estes surgem apenas em algumas sequências, sem a devida contextualização, pois nem sempre isolar um tema ajuda.

Porém, o contexto em que surge o Tropicalismo não é apenas nacional. Deriva das lutas terceiromundistas, configuradas na Revolução Cubana e na luta contra a Guerra do Vietnã e o imperialismo estadunidense. Daí o caráter nacional da luta político-ideológica no Brasil. Era a um só tempo uma resistência à Ditadura Militar e contra seu principal sustentáculo: os EUA. O nacionalismo é, assim, uma estratégia de libertação, contra a dupla opressão, interna e externa. E quem melhor entendeu este processo com suas músicas foi Geraldo Vandré, com sua poderosa e emblemática canção de protesto (“Prá Não Dizer Que não Falei de Flores”).

Sem esta contextualização, imagens como as da passeata dos 100 mil servem apenas para mostrar que Caetano e Gil estavam lá. Porque o Tropicalismo, em si, escapou a seus criadores, assumiu outra vertente (Caetano mesmo o diz: ”Tem gente que continua o movimento”). O filme a identifica: Hélio Oiticica (artes plásticas), José Celso Martinez Correia (Grupo Oficina), Décio Pignatari (Concretismo), José Agripino de Paula, 1937/2007 (cineasta, escritor e visionário de “Hitler do 3º Mundo”), o Cinema Marginal (Udigrudi), e até Glauber Rocha (“Terra em Transe”). Além de sofrer influência do rock (Beatles), da música rural (sertaneja), da MPB e da mutação urbana.

Hoje dá para entender tudo

Se nas letras de Caetano, estruturadas em imagens, há influência do cinema (veja “Tropicália”) e do concretismo, as de Gil fundem vários ritmos populares (baião, forró, maxixe), ambas bem encadeadas (arranjos) por Rogério Duprat. São de uma riqueza jamais vista na música nacional.

Toda essa contribuição não seria registrada não fosse a emergência da televisão de massa no Brasil. As novelas, os musicais e o futebol a consolidaram. Os festivais, um empreendimento lucrativo, termina dando visibilidade ao Tropicalismo (e não só a ele). E com isto canaliza também as manifestações de protesto contra a Ditadura Militar sem ter esta intenção.

É claro que a eclética ideia de juntar o iê-iê-iê com o Tropicalismo seria o mesmo que fundir o bom mocismo direitista, conformista, bem aceito pelo regime dos generais, com a juventude engajada. Certamente haveria um choque. O Tropicalismo jogou importante papel no período ditatorial para ser negligenciado. Não dá para remendar, amenizar, mesmo porque a ação foi multiplicada por inúmeros intervenientes culturais e dá para ser sentida ainda hoje na criatividade de Tom Zé e na irreverência de Gilberto Gil. Felizmente hoje dá para entender tudo, sem retoques.

“Tropicália”.
Documentário/História.
Fotografia: Eduardo Piagge.
Ideia original: Vaugh Glover/Maurice James.
Roteiro: Marcelo Machado/Di Moretti. Direção: Marcelo Machado.

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