Tudo é Carnaval

Até uns anos atrás, dizer planeta afora que o Brasil era o “país do futebol, do carnaval e da marginalidade urbana” significava o mesmo que falar dos safáris no Quênia, no Caminho de San Tiago ou na escalada do Everest. Eram atrações encantadas ou amedrontadoras a mais nesse mundão dos cifrões, negócios e negociatas.

Ocorria que, sem querer, um aspecto da realidade brasileira aparecia com mais força. Para um país de maioria negra, seria mesmo natural que o destaque maior fosse dado ao rosto do Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, às cintilantes curvas das mulatas cariocas e aos rostinhos ferozes dos pivetes armados. Todos negros, pois.

Mas nem era este o sentido. O que se queria mostrar era um país exótico, especialista em certas artes rústicas, que caiam no gosto ou amedrontavam uns endinheirados viajantes. Muitos deles querendo dar um refresco de Wall Street e de outros simbólicos centros financeiros mundiais.

Por coincidência, historicamente esses eventos em São Paulo e no Rio de Janeiro ocorriam, respectivamente, na Avenida Paulista e na Avenida Rio Branco, ambas emblemáticas hospedeiras da banca internacional, aqui verde-amarelada.

Mas os tempos mudaram. O Brasil não é mais o país só do futebol, do samba e dos pivetes. Tampouco o é somente dos atléticos expoentes dessas artes ou de algum militar carrancudo de plantão no poder. Afinal, a própria pivetada acaba sendo menos perigosa que as bombas em aeroportos e palácios, useiras nas bandas deles.

O Brasil agora é uma potência emergente, quase emparelhada com os mais ricos países do mundo nas medidas dos cifrões. E tem um líder chamado Lula que só não é secretário-geral das Nações Unidas porque é muito pouco para ele. E, de quebra, é presidido por uma mulher, branca e sorridente.

Uma faceta pode ter nada a ver com as outras, até porque o carnaval que atrai os olhares dos quatro cardinais, já não é só nas duas maiores cidades do País. Têm festejos, batuques, paetês e alegorias do Oiapoque ao Monte Roraima e de Natal a Tabatinga, se quiserem.

Na realidade, o Carnaval sempre foi festa importante no País inteiro. Só que ficava cada qual no seu canto. Hoje, não. Onde houver um tambor tem alguma câmera por perto e, depois da filmagem, vem alguém que não conhecia aquele tipo específico de carnaval brasileiro.

Continua sendo verdade que o Brasil fica meio anestesiado nesses dias de fevereiro, que este ano vieram bater em março. Talvez até mais verdade agora que a grande mídia eletrônica cobre tudo, já que há quem patrocine tudo.

O próprio noticiário da mídia, ou toda programação, passa a viver o clima festivo. Nem a insurgente guerra civil na Líbia lhe rouba espaço. E quem sabe Luis da Câmara Cascudo não tivesse que sair de casa para escrever páginas sobre o verbete “carnaval” no seu pujante Dicionário do Folclore Brasileiro.

O fato é que aquela festa com farinhas e água do início do Século 19, copiada dos entrudos portugueses, já ocorria em todos os cantos do País. Mesmo puxando a sardinha para seu estado, o Rio Grande do Norte, Cascudo registra que essa festa já nasceu nacional. Quanto mais agora.

O que mais sobressai na festividade é a diversidade de formas com que ela aparece. Cada região acrescentou pitadas ou bocados de seus ritmos, danças e costumes e vem modelando formas diferenciadas de festejar.

Essa variedade se manifesta numa mesma cidade ou até em bairros. Cada bloco, cada bairro, cada comunidade rural tem seu jeito próprio de fazer a festa. Em minúscula forma paroquial, quase familiar, ou em escala ampliada. Um exemplo clássico é o de Recife e Olinda, onde o frevo e o maracatu ganham dezenas de formas diferentes.

Na Bahia, o berço do samba, a marca da inovação convive com a preservação das formas originais. O samba de roda das cidades do Recôncavo continua ressoando como antes de Salvador deixar de ser a capital do País e as baianas virarem alas nas escolas do Rio.

Mesmo na capital, enquanto a festa atrai multidões para as áreas hoje definidas como oficiais, no centro histórico do Pelourinho o que vigora são as bandas de metais com suas seculares marchinas.

Os blocos de percussão como o Filhos de Gandhi e o Ilê, saem com até cinco mil figurantes em desfiles no Campo Grande, na área tradicional de Salvador, e no chamado circuito Barra/Ondina, na asseada orla marítima, que atrai mais turistas do mundo inteiro.

Nesses dois trajetos, os estrondeantes trios elétricos puxam um ritmo que virou excelente negócio. A maioria deles vende o direito de desfilar num avarandado de cordas junto ao caminhão por valores que vão até R$ 800,00 por dia de saída, para cada pessoa.

Não é difícil imaginar que os negros, ali, ou estão entre os “cordeiros” (pessoas pagas para segurarem as cordas de isolamento) ou do lado de fora dessas barreiras. Vale lembrar que trios como o Expresso 2222, de Gilberto Gil, e o Timbalada, de Carlinhos Brown, não usam as cordas de isolamento.

Enfim, como lá no comecinho, o Brasil cresce e aparece. Inclusive no seu Carnaval.

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