Um brasileiro chamado André

Filme rodado há 50 anos traz personagem com os mesmos dilemas dos brasileiros de hoje.

Angela Valério; Stepan Nercessian

Há 50 anos chegava aos cinemas o filme “André, a cara e a coragem”, de Xavier de Oliveira. Quem passa pela internet e faz uma busca pode cair em sinopses falhas, errôneas ou ralas. Uma diz que ele virou um gigôlo, em outra que era um garoto de programa. Nada disso fica explícito. Parece que quem escreveu as sinopses não assistiu o filme. A história conta o drama de um jovem de 17 anos, interpretado pelo já ótimo, Stepan Nercessian, em busca de um lugar ao sol na cidade grande. 

Você pode encontrar na página da Cinemateca uma sinopse mais fiel e detalhada do filme.

Aliás, o filme é tão bom quanto “Marcelinho, Zona Sul”, primeiro longa de Xavier e que marca a estreia de Stepan nas telas de cinema. Ele foi realizado um ano antes de “André”, e foi um grande sucesso de público. 

A história de muitos brasileiros

O enredo mostra o jovem André, que sai do interior de Minas Gerais para conseguir um emprego que lhe de dignidade e que possa fixá-lo na cidade do Rio de Janeiro. Porém, suas tentativas são frustradas fazendo-o pular de emprego em emprego. 

André divide o quarto, num cortiço, com o amigo Marujo, que lhe fala como é a vida fora do Brasil. 

Em um dos empregos, André conhece uma garota, eles se apaixonam e começam a namorar. Eles são demitidos da empresa e a situação se agrava mais ainda quando ela revela que está grávida. 

Mas o filme é muito mais que este resumo.

Um filme entre linhas 

É preciso situar o filme no tempo. Ele foi feito em plena ditadura militar, dois anos após do AI-5, com o tricampeonato da seleção brasileira e inserido no conhecido “Milagre Econômico brasileiro”. 

E nesse contexto, poderíamos esperar um filme ufanista e completamente alijado do debate político. Mas não é.

Existem cenas do cotidiano da cidade, com uma câmera realista que acompanha o jovem e, de repente, vemos vários trabalhadores amontoados, pedindo uma vaga de emprego mostrando suas carteiras de trabalho. É o retrato do desemprego existente naquela época. Isso é uma clara exposição de que o tal “milagre” servia para as elites econômicas e não para o povo. Ou seja, o governo militar era uma tragédia para os trabalhadores. 

Isso também é representado pelos empregos de André, sempre precários. Seja no restaurante do albergue, seja carregando placas nas costas, ou cobrando faturas vencidas ou, mesmo, entregando roupas numa bicicleta. 

O sonho de entrar numa empresa bacana fica sempre distante. Mesmo para conseguir uma vaga num banco teria que passar pelo “teste do sofá” do gerente. Eram tempos de assédio moral e sexual naturalizados. 

Ao mesmo tempo, André carrega uma dignidade. Mesmo nas situações mais difíceis, não lhe é dada uma saída fácil como a malandragem ou criminalidade, como acontece em muitos filmes. 

Além da cidade como cenário, o outro espaço cênico é o cortiço degradado em que ele vive. O local é ocupado por pessoas invisibilizadas na sociedade, como pequenos biscateiros, retirantes e desempregados. Não há qualquer humanidade naquele ambiente. 

Também chama a atenção a relação com o amigo Marujo, que vive pelo mundo. Ele está sempre dos outros países. Em uma conversa, revela que assistiu a Copa do Mundo em Portugal e em uma televisão colorida. André fica impressionado.

Em um determinado momento, surge a possibilidade de deixar o Brasil. No filme é apresentado esse desejo do Marujo em viajar e conhecer outros lugares, mas podemos encarar essa situação como uma forma de exílio. Vale lembrar que muitos brasileiros já tinham deixado o país. Já vivíamos aquela situação de “Brasil, ame-o ou deixo-o”, apesar do slogan ter sido criado pelo regime militar somente em 1973. 

Na cena em que o Marujo vai embora, André olha o navio se distanciando com um certo desejo de ir embora também, mas continua a sua luta pela sobrevivência.

Ou seja, veladamente, o diretor Xavier de Oliveira escancara um Brasil que não estava dando certo.

Entre a euforia e a desilusão

Na última cena, André anda solitário e desiludido pela cidade. É a virada do ano e os carros passam buzinando e pessoas se congratulam. Nos prédios vemos papéis picados caindo das janelas. 

A câmera para e centraliza André. Já não sabemos se há uma comemoração ou autodestruição dos sonhos do jovem pelos arranha-céus com aquela cortina de papéis atrás do personagem. A cena é notável.

É uma pena que este filme não tenha tanto destaque na cinematografia brasileira, porém ele nos atualiza no tempo e diz que aquele período foi sombrio para a política, para a economia e para a esperança de qualquer indivíduo.

Ou seja, somente os idiotas sonham com a volta dos militares ao Poder.

Assista o filme:

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