Um caboco do Marajó no serviço da casa do Barão do Rio Branco

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Tio Dalcídio viajava rio abaixo e rio arriba por dentre ilhas sempre com calhamaço de romance chocando debaixo do braço até dar à luz, na vila de Salvaterra, o "Chove nos campos de Cachoeira" e o fora de série "Marajó"… A consciência social lhe doía e obrigava o quixote papa-chibé a entrar em liça e lutar pela própria sobrevivência e salvação dos outros.

O mais notável dos 15 filhos e filhas do capitão Alfredo Nascimento Pereira e suas três sucessivas mulheres, a índia minha avó Antônia Silva, a admirável senhora negra pontapedrense dona Margarida Ramos e a igualmente senhora negra e respeitável dona Isabel Trindade, comadre querida de minha mãe (nora branca de olhos azuis do redator e dono de "O Arary": o capitão "matou" duas de suas esposas e enviuvou duas vezes, a terceira esposa o "matou" e ficou viúva ainda nova e restando assim até à morte…) é paradigma de todos nós quantos, no fim do mundo, desconfiam que sem educação não há salvação. E, ao mesmo tempo, se questionam: educação pra quê e para quem?

Os raros "Alfredos" da vida (referência ao personagem principal do romance dalciano, provavelmente alter-ego do autor e muito mais…)no ilhamento ultraperiférico do vasto mundo drummoniano nascem, como disse o poeta, para ser esquerda na vida…

O neto do redator e dono de "O Arary" [secretário da intendência da vila da Cachoeira] que vos fala, também vagou de canoa a remo pra riba e pra baixo na universidade da maré pelo curso d'água entre as ilhas do fim do mundo e a feira do Ver O Peso, na cidade grande do Grão Pará. Dormi alguma vez em riba de tolda de canoa embrulhado em vela de igarité "chapada" de paneiros de açaí e molhada de chuva na fria noite de travessia à espera de maré… Da friagem do vento de madrugada ao meio da baía do Marajó ninguém me conta! Quem diria que estávamos sob a linha do equador, plena "zona tórrida" neotropical? Também fui cria de redação do breve "Jornal do Dia" de Belém do Pará, cronista bissexto de "A face oculta do Ver O Peso" na vã tentativa de converter em estória a carga pesada do dia-à-dia da reportagem policial, repórter por pouco tempo da célebre "Folha do Norte", colaborador de "A Provincia do Pará", "O Liberal", e algumas vezes do "Correio Braziliense"… Ultimamente, com muito gosto colunista do portal Vermelho – www.vermelho.org.br (pros@apoesia).

Que nem o febrento menino Alfredo, eu também tive hora de pensar sobre a triste condição humana dos pobres meninos e meninas ribeirinhos, filhos da Criaturada grande de Dalcídio, tal qual Alfredo ("Chove nos campos de Cachoeira") ao voltar muito cansado dos campos pretos de queimadas infernais e esperar a volta da chuva para ver o verde, de novo, renascer como os prados da Holanda no fim do inverno (no dizer do capitão meu avô)… De fato não tive a magia de um carocinho de tucumã para fazer de conta que um outro mundo é possível; mas fui fazendeiro de vaquinhas inventadas de mangas verdinhas caídas com a chuva ou touros e cavalos de raça recortados das páginas amareladas da revista "Chácaras e Quintais" (pois que a agricultura familiar é a riqueza da nossa várzea, segundo a doutrina do capitão e meu outro avô, o camponês galego imigrante do Curralpanema). De qualquer maneira, o demônio da memória nunca me deixou sossegar.

Não tive caroço mágico para jogar durante o tempo das vacas magras nas ilhas, mas o tal demônio Jurupari me levou longe tal qual a Ulisses, da ilha de Ítaca na guerra de Tróia, aliás suburbiozinho panema "O Fim do Mundo" da vila Itaguari, margem esquerda do rio Marajó-Açu. Coisa rara pra James Joyce nenhum botar defeito… Foi assim que fui parar em Brasília, cheio de fé e espanto, em 1971 (ano de minha segunda ressurreição após morte para-mitológica, em 1968, por fadiga, malária e depressão físico-política… depois eu conto desde a primeira morte, afogado no rio e ressuscitado imediatamente graças ao me camaradinha salvador, dito Niquelado, filho do preto Camilo, compadre de meu pai). Depois de pegar estrada (em lugar do antigo Ita do Norte) me vi um dia chegar ao Planalto central pela Belém-Brasília para engrossar a população amazônica da Capital federal. Haverá momento nesta minha viagem da memória de voltar à vaca fria e contar a aventura e desventura de um caboco na Corte brasiliense.

Agora quero apenas falar de como foi que, de repente, concorri dentre mais de 5 mil candidatos em concurso público na UnB para ocupar cargo público federal de Oficial de Administração no famoso Itamaraty. Olha lá, diria o negão Parriba, piloto da igarité "Dinoca"; o filho do compadre Rodolpho; um caboco sem eira nem beira e ainda por cima, comunista… Eram anos da Ditadura! Infiltrar-se na casa do Barão do Rio Branco não era brincadeira para o neto do capitão, sobrinho do "subversivo" Dalcídio Jurandir (menos mal que o romancista da Amazônia apenas era conhecido por poucos no Rio de Janeiro, os intelectuais de Brasília até hoje não sabem quem é o "índio sutil" companheiro de Jorge Amado, se não eu não estaria aqui com esta prosa toda).

A seguir nas páginas eletrônicas de "O Arary" novas lembranças revividas. Abraços saudosos. Recomendem-me aos amigos do Museu do Marajó – www.museudomarajo.com , vejam http://marajo70.blogspot.com/ e o site da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir [Niteroi, estado do Rio de Janeiro] e deem uma espiada ao sítio www.marajoara.com para saber bem aonde estão se metendo

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