Um casal (quase) feliz

Dia desses fui comer um pastel e tomar a famosa batidinha no Bar do Ceará, um dos botecos mais premiados e concorridos de nossa cidade. Sentei-me e fiz o pedido descontraído e, ao mesmo tempo, um pouco cansado depois de um dia intenso de trabalho.

Ao meu lado três mulheres conversaram animadamente. Sempre achei interessante ouvir conversar alheias em público. Quase sempre advém daí ótimas cenas que aproveito em peças de teatro ou em textos diversos buscando refletir sobre o comportamento humano e suas contradições.

Uma delas contava uma história repleta de detalhes tendo como protagonistas duas colegas de trabalho que se apaixonaram e resolveram assumir publicamente essa relação. Apresentaram-se às respectivas famílias e aos amigos como duas pessoas enamoradas. Por causa disso, enfrentaram situações difíceis e inusitadas, mesmo numa época em que se aceita oficialmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as diferenças entre gêneros ou opções sexuais tenham sido já introjetadas pelo conjunto da sociedade como algo normal e corriqueiro. De qualquer modo os preconceitos continuam ativos em muitas esferas da vida social, causando transtorno a quem se opõe a eles de alguma maneira.

O casal mencionado manteve uma relação feliz durante alguns anos. Compartilharam inúmeros momentos significativos na vida de ambas. Faziam juntas tudo o que era possível. Uma viagem pelo Nordeste foi o ponto alto dessa paixão e dessa afinidade profunda e duradoura. Depois disso começaram as constantes brigas provocadas pelo ciúme doentio e pelos traços maníaco-obsessivos de uma delas. Transtornada, esta chegava a telefonar incontáveis vezes por dia tentando saber onde e com quem a outra se encontrava. Foram momentos tensos e repletos de acusações mútuas. Até que por fim ocorreu a ruptura, acarretando o seu descontrole emocional e a obsessão pela vingança.

Lembrei-me de um desfecho trágico, noticiado pela imprensa há algumas semanas, envolvendo duas professoras que mantinham uma relação amorosa.

O que aparentava ser um grande amor transformou-se então num pesadelo, chocando as amigas mais próximas. A que estava sentada de frente para mim demonstrou com o rosto crispado a sua indignação e perplexidade com tanta destemperança. Afirmou categórica que considerava um absurdo ver aquele caso de amor terminar em caso de polícia.

Degustei mais um pastel e, bebendo em silêncio um gole da cerveja gelada, dei razão a ela. A poetisa grega Safo, a primeira mulher na literatura a assumir o amor e o erotismo entre iguais, dizia que o amor é devoção, mas nos alertou também sobre a ferida do ciúme que corrói a alma e a povoa de dor. A simples presença da mulher amada estimulava nela uma perturbação prazerosa que todos conhecemos: "Se te miro apenas um instante/ me falta a voz./ A língua gela, um fogo tênue/ desliza sob a pele."

Paguei a conta e levantei-me sem ouvir o final da história. Sei muito bem que o amor e o ódio muitas vezes se confundem, causando muitos sofrimentos à espécie humana. Ao passar por elas balbuciei: que o amor oriente a todos e a todas.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor