“Um Homem que grita”: Tragédia sem fim

Diretor Mahamat-Saleh Haroun traz o Chade para as telas em filme que mescla tragédia familiar, avidez capitalista e guerra civil.

                  A história do Chade, país da África Central, é marcada por sucessivas invasões e ocupações ao longo de mais de sete mil anos. Desde sua formação, árabes, ingleses, alemães e franceses fracionam seu território, subjugando seu povo. Nem com sua independência em 1962 ficou livre da disputa política e territorial entre Líbia e França. País essencialmente agrícola tem fronteiras com Nigéria, Camarões e Líbia. E uma paisagem tão desolada quanto a vida de cerca de seis milhões de habitantes, em sua maioria muçulmanos. 

                   É este país que o diretor chadiano Mahamat-Saleh Haroun (Xamena, 1961), radicado na França desde 1982, aborda em “Um Homem Que Grita”, Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2010. Não é um filme qualquer, destes que registram o cotidiano de comunidades paupérrimas, para agradar jurados de festivais do 1º Mundo. Haroun mescla tragédia, conflito entre pai e filho, avidez capitalista e o eterno problema da guerra civil. Sua dramaturgia prima pela imagem bem elaborada, embora às vezes resvale para o academicismo, que não tira o brilho de sua obra de dez filmes. Não é, portanto, um aprendiz.

                 Mas o que vale em “Um Homem Que Grita” é a clareza com que conduz a epopéia nada exemplar de Adam (Youssouf Djaoro), ex-esportista campeão e exemplo para sua comunidade. Aos 60 anos, trabalha com o filho Abdel (Dioucounda Koma), de 18 anos, como salva-vida num hotel classe média na capital N´Djamena. Recém adquirido por uma empresa chinesa, o hotel passa por mudanças e ele vê sua estabilidade se esboroar quando é comunicado que será substituído pelo filho. Numa sequência que bem ilustra a intenção da chinesa Wang, ele que permanecia parado o tempo todo, vê Abdel exercitando a criançada, divertindo jovens e adultos.

                 É tudo que Wang queria para impulsionar seus negócios. Ela reduz o quadro de pessoal, troca inclusive o cozinheiro, e aumenta sua clientela. Adam, assim, fica distante dos melhoramentos implantados por ela. Haroun então introduz uma discussão antiga sob um novo ângulo: a da rotatividade da mão de obra e das velhas gerações pelos jovens mais preparados, num país agrícola assolado pela guerra civil. Adam compreende qual é seu espaço ao ver o que aconteceu ao cozinheiro David (Marius Yelolo), cuja comida também não satisfazia o paladar da nova clientela.

                Disputa com o filho leva
                Adam ao desespero
É daí que nascem suas dúvidas e sua disputa com o filho. A semente do neorrealismo brota das sequências que o levam a agir e o espectador a sentir que está diante de um filme diferente, pois Haroun encadeia a narrativa com ironia e equilíbrio que dão complexidade ao tema. Quase do nada surge a adolescente malinesa Djénéba (Djénéba Koné), miúda, sofrida, abandonada. O dilema de Adam aumenta. Principalmente porque montou um estratagema para manter seu emprego e agora se defronta com o impasse que o leva a uma opção extrema.

                 Este fato novo, espécie de virada da história, lança “Um Homem Que Grita” num labirinto shakespeariano, em que a avidez pelo poder ou pela manutenção do espaço envolve o algoz de tal maneira que ele se enreda em sua própria teia. O dilema de Adam se agrava porque a própria história do país o agarra. É como se Haroun dissesse ao espectador: os conflitos políticos te pegam de todas as formas. No caso, a guerra civil que obriga a todos, sem distinção, entregar o filho para o sacrifício do conflito bélico, configurada nas sequências de Adam percorrendo ruas e avenidas desertas, temendo ser preso a qualquer momento, ou do líder de sua comunidade, Ahmat (Emile Abossolo M´Bo), que tudo exigia dele, mas que em meio aos combates foge com a família, abandonando-o.

                Assim, este pano de fundo da guerra civil chadinesa serve para Haroun compor a parábola do pai que oferece o filho em sacrifício para não ser marginalizado. A composição de cena e a encenação dão às sequências finais uma força difícil de encontrar não só no cinema clássico como no atual. E é bom repetir, com uma clareza que ilumina a tela, aumentando sua complexidade através de sucessivas elipses. Contribui para isto a fotografia do francês Laurent Brunet, que adensa o clima para ampliar a tensão da narrativa. Até que a epopéia de Adam se complete a moda indígena, cheia de simbolismo e rituais de tragédia grega.

               Não dá para sair do cinema indiferente a “Um Homem Que Grita”, tampouco ao sacrifício de todo um povo, entregue às manipulações políticas de todo espectro, intertribais e imperialistas, sem descanso. Quando Djénéba canta é o sofrimento de seu povo que emerge, e ela só externa sua paixão por Abdel. Mas move de tal modo seu sogro, a quem chama de pai, que ele sai para refazer um caminho sem volta. Pena que outros filmes de Haroun não cheguem ao circuito nacional, mesmo assim dá para o espectador sentir que existe um olhar aguçado dos problemas africanos para além dos estereótipos, preconceitos e costumeira estigmatização do cinema hollywoodiano. Um grande filme!

Um Homem Que Grita”. (“Um Homme Qui Crie”). Drama. França/Chade/Bélgica. 2010.  92 minutos. Roteiro/Direção: Mahamat-Saleh Haroun. Fotografia: Laurent Brunet. Elenco: Youssouf Djaoro, Dioucounda Koma, Marius Yelolo, Emile Abossolo M´Bo, Djénéba Koné.

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